
Alberto José
1 A suspeita
Estava eu seguindo minha vida normalmente, aos 35 anos. Trabalhando como musicoterapeuta, atendendo, principalmente, crianças com autismo, além de alguns casos de reabilitação neurológica. Tocava em uma banda que tinha uma agenda frequente e pagava bem, fazendo viagens esporádicas para shows. Satisfeito com minhas produções artísticas, havia lançado um álbum de blues e dois livros de poemas.
Apesar de estar tudo aparentemente bem, eu vinha apresentando um crescente desinteresse em relação ao trabalho da banda, escalonando para uma indiferença com relação ao público. Tocava para 300, 400, mil pessoas e não me importava com nenhuma delas. Estava desanimando!
Estava frequentemente exausto devido a sequelas de pós-covid, que apresentavam sintomas difíceis de ser ignorados. Fazia crises constantes de bronquite e minha tosse preocupava a todas as pessoas ao meu redor, menos a mim. Tentava, nem sempre da forma mais eficiente, me cuidar.
Era acometido por sono e queda de pressão frequentemente ao dirigir em vias expressas, a 90, 100 quilômetros por hora. Sabia que podia sofrer um acidente, mas não me envolvia emocionalmente com isso. Estava um pouco negligente com exames e tratamentos em geral e refletia se não estava assumindo compromissos demais para meu estado de saúde. Além disso, os temas “morte” e “suicídio” apareciam frequentemente em meus poemas e composições, apesar de eu não apresentar tal ideação.
Uma noite, saí com minha esposa para tomarmos um vinho em um restaurante que apelidamos de “Barata’s” – Não preciso explicar o motivo do apelido, basta mencionar que o estabelecimento, por algum motivo, costumava oferecer um ambiente muito reservado! – e comentei sobre alguns amigos serem diagnosticados com autismo na fase adulta e o quanto isso me intrigava.
Eu, que vinha lidando diariamente com autismo, percebia que algumas pessoas, apesar de não terem diagnóstico, com certeza estavam no espectro devido a aspectos sutis no olhar, em trejeitos de fala e alguns comportamentos e outras pessoas, porém, que não apresentavam sinais que eu pudesse perceber além da própria história de vida, foram avaliados e diagnosticados.
Perguntei se eu também não poderia ser autista, afinal, sempre me senti diferente, tinha minhas excentricidades e me identificava com algumas características dos pacientes atípicos que eu atendia. Ela, neuropsicóloga especializada em testes e professora da UFRJ, respondeu que meu histórico apontava mais para o quadro de Altas Habilidades.
Não era a primeira vez que alguém me dizia tal coisa. Nas vezes anteriores, eu havia refutado a suspeita assertivamente. Como eu poderia ser superdotado se só apresentava facilidade para algumas disciplinas específicas? Como, se eu apresentava, em contrapartida, grandes dificuldades em outras? Como, se nem minha caligrafia apresentava bom desenvolvimento, dando um destaque negativo frequente à minha empobrecida coordenação motora? Pensava que já havia sido inteligente em algum momento da vida escolar, mas deixara de ser.
Lembro que havia me identificado quando estudei o quadro, durante a faculdade. Mas não dei importância, afinal, eu me identificava com tantas patologias, já pensei que pudesse ter TEA, TDAH, comportamentos compulsivos e jurava que eu era bipolar. Pensei fazer parte da hipocondria que acomete todos os estudantes da matéria psicopatologia.
Minha vida escolar realmente dava umas “bandeiras”. Durante o primário, não era considerado mais do que um aluno “relaxado, desorganizado e que vivia no mundo da lua”. Minha mãe, que era professora de matemática, dava aulas de reforço enquanto eu brincava pela casa e eu acabava ouvindo os conteúdos de séries posteriores com especial curiosidade. Sei que havia sido adiantado de série na pré-escola por desenvolver, espontaneamente, leitura precoce.
Ao começar o ginásio, estudei em um curso preparatório para o Colégio Militar do Rio de Janeiro durante poucos meses. Não tive uma colocação suficiente para ingressar na instituição, mas tive um desempenho melhor que os colegas que fizeram o curso durante todo o ano. Pela primeira vez, obtive algum destaque intelectual.
Durante o restante do ginásio, me destaquei muito em notas, gabaritei todas as provas de algumas matérias por anos e costumava estar aprovado já no terceiro bimestre. Apesar disso, eu não era estudioso e sequer gostava de ir à escola. O destaque chegou ao ápice no último ano do ginásio.
Fiz outro curso preparatório, desta vez, para o Colégio Naval. Os colegas e professores se impressionavam com meu desempenho nos simulados e tive aprovação com boa colocação, ingressando como o aluno mais jovem de minha turma.
Porém, não me adequei tão bem à rotina e às regras da instituição, não me envolvi em atividades desportivas, não tirava notas tão boas e fui, progressivamente, desanimando com relação às matérias. No meio do segundo ano, desisti da carreira militar e terminei (Deus sabe como…) o ensino médio em uma escola onde devo ser, até hoje, o pior aluno que já passou por lá. E nunca mais prestei um concurso público!
Tendo escolhido a música como trabalho, assunto no qual nunca fui, exatamente um prodígio, aprendi o que significava precisar de esforço e disciplina para aprender algo e, ao contrário de parecer um martírio, aprendi a gostar disso e foi algo que me deu motivação e um novo significado para minha vida.
Nunca gostei da ideia de “nascer com um dom” e simplesmente “brilhar”. O esforço para desenvolver habilidades, a insistência e o prazer de, após muita dedicação, obter resultados, soam para mim como o verdadeiro superpoder. E considero que, quando se dá a desistência de um aprendizado pela crença de falta de aptidões inatas, trata-se de uma desculpa muito preguiçosa. Confesso que tal filosofia foi posta em xeque, para mim, ao longo do processo de identificação AH/SD.
Na faculdade de musicoterapia, tive destaque mais por questões de liderança estudantil do que por notas, mas não deixei de ser visto como um potencial pesquisador da área caso seguisse carreira acadêmica, expectativa que frustrei ao recusar a ideia. A essa altura, já não me incomodava em decepcionar as pessoas que acreditavam em mim.
Bom, ainda durante a taça de vinho no “Barata’s”, perguntei à minha esposa se não poderia me avaliar, pois já avaliara muitos pacientes. Ela disse que não poderia fazê-lo, devido a eu ser seu marido, mas que seria importante eu passar por uma avaliação, pois estava entrando em uma rigidez comportamental que, a seu ver, estava me colocando em risco.
2 A identificação
Apesar de meu histórico do período escolar, eu tinha minhas desconfianças em relação a ser mesmo superdotado. Afinal, apresentei bom desempenho em poucas disciplinas específicas e em um período específico. Não tenho uma carreira profissional exatamente brilhante, apenas tenho uma carreira e, se tenho algum sucesso profissional, tal se dá mais pela crescente demanda pelo trabalho que faço do que por minhas qualidades profissionais.
Lembro de ter conhecido um adolescente superdotado quando era criança. Ele tinha o inglês fluente, era reservado e não brincava na rua e gostava de vídeo games. Eu fui uma criança de subúrbio que passava o dia todo na rua, jogava bola, brigava, me sujava de lama… enfim, uma infância normal!
Minha esposa é professora universitária com doutorado e meu irmão um engenheiro com três faculdades e um mestrado. Como o superdotado poderia ser eu, que muito mal, havia parado na graduação e feito uma formação quase dez anos depois?
Fui para o youtube pesquisar sobre o assunto e ouvi vários psicólogos falando sobre aspectos relacionados ao superdotado adulto, que não tinham a ver com desempenho acadêmico ou inteligência. Para o meu espanto, comecei a me identificar muito. Excessivamente autocrítico, irônico, com muita intensidade emocional, criativo, com muito engajamento em tarefas, envolvimento aprofundado em meus assuntos de interesse, histórico de depressão e ansiedade, senso de justiça, até alergias e intolerâncias alimentares! Tudo batia com o check list! A cada 10 características do perfil, eu tinha 11.
Em contrapartida, eu pensava se não estava me identificando por querer me sentir inteligente e especial, como compensação às minhas inseguranças e frustrações. Bom, apenas uma avaliação poderia me trazer respostas e decidi parar de pesquisar o assunto enquanto estivesse no processo.
Procurei uma neuropsicóloga que me foi indicada por minha esposa. Descobri que, por coincidência, ela tinha um paciente em comum comigo. Ela havia visto vídeos do meu trabalho atendendo o mesmo e elogiou muito a minha atuação no caso específico. Tive que lembrá-la que perdia tempo fazendo-me elogios, pois eu não dava ouvidos aos mesmos, apenas me sentia cumprindo minha obrigação e via defeitos em tudo o que fazia.
A avaliação foi feita em tempo recorde. Fiz recesso na última semana do mês de julho e pedi que me encaixasse em qualquer horário em que houvesse cancelamento de outros pacientes, algo muito comum em um mês de férias escolares. Além disso, fui muito envolvido nos testes e fazia muitos em cada sessão. Fizemos 5 ou 6 sessões em uma semana e respondi em casa aos questionários. Minhas poesias e letras de música também foram usadas na avaliação.
Apesar de acontecer mais rápido que o normal, o período pareceu-me uma eternidade, pois envolveu grande ansiedade de minha parte. Além dos testes tradicionais de QI, havia questionários sobre TEA, TDAH, ansiedade, depressão… entendi como é complexa uma avaliação deste tipo.
Durante o processo, não sabia se estava “indo bem” e, contraditoriamente, “ir bem” é o que me classificaria em uma condição neurodivergente. Não nego que me senti surpreso quando, na devolutiva, descobri que obtive pontuações altas em alguns dos testes.
Minhas assincronias apareceram na avaliação, havendo diferenças significativas, principalmente entre o QI verbal e o QI de execução, o que vi, por minhas pesquisas, que era um perfil comum em superdotados, devido a perfeccionismo e, também a lentificação executiva. Tal discrepância explica, em si muitas das minhas dificuldades no dia a dia.
A obtenção de pontuação acima de 130, quase 140 em alguns índices que envolviam respostas verbais e inferiores a 120, próximas a 110 em outros, que envolviam execução; é um bom retrato de como minha mente funciona: uma torrente de ideias e uma morosa implementação, vivenciando entre a frustração e a sobrecarga.
O índice total, 128, apesar de inferior a 130, analisado com toda a conjuntura e em conjunto com o histórico e outros aspectos clínicos, não menos importante que os testes, apontava para a identificação de Altas habilidades / Superdotação. Restava a mim entender o que esta condição significa e o que eu precisava mudar para ter uma vida mais saudável e funcional e, é claro, evitar a manutenção de comportamentos que me colocassem em risco.
3 Assimilação
Resta-me agora, desconstruir os mitos e preconceitos que eu mesmo trago e ter um entendimento real do que esta identificação significa e como seus aspectos se manifestam em mim agora já que, apesar de me ajudar a entender melhor o meu passado, não há nada que eu possa mudar com relação ao que já aconteceu. Mudanças devem ocorrer daqui pra frente!
Um diagnóstico na fase adulta é como um plot twist em um filme, aquele momento em que fica claro que nada é como se pensava que era. Entrar em negação é um caminho muito fácil e sedutor. Muitos autores e teóricos citam as fases do luto como sendo vivenciadas após uma identificação diagnóstica, mas, em meu caso, trata-se mais de um processo de renascimento do que de lida com a morte.
Posso pensar que poderia ser diferente se tal identificação tivesse acontecido em minha adolescência, quando fui medicado com antidepressivos e ansiolíticos. Mas, de alguma forma, tive meios para, aos trancos e barrancos, chegar aonde estou e posso dizer que, na prática, não existe “identificação tardia”, pois nunca é tarde para o autoconhecimento.
Não estou interessado em ser “genial”, não pretendo fazer descobertas inovadoras ou ajudar no avanço da ciência ou da humanidade. Sinceramente, não me importo com nada disso, estou preocupado em pagar minhas contas, fazer coisas que gosto e ajudar, em meu trabalho, as crianças que, assim como eu, se desenvolvem por um caminho diferente do esperado.
Assisti muitas horas de conteúdo sobre o tema, li artigos e, apesar de conseguir compreender alguns mecanismos de meu funcionamento, tal não é suficiente para mudá-los. Tenho buscado ajuda profissional e, agora, profissionais especializados em minha condição.
Ressignificar o passado é uma tarefa mais fácil do que “reprogramar” hábitos do presente. Muitas vezes adotei estratégias que me ajudaram a lidar com algumas dificuldades, porém, há condicionamentos que não me ajudam muito.
Fazendo carga horária mais reduzida no trabalho, tendo um período sabático em relação a tocar em grupos musicais, para aquietar minha mente caótica e volúvel e não envolver outras pessoas em minha confusão, encontrando minhas próprias formas de me expressar musicalmente e poeticamente, sem tantas regras rígidas e sem me fazer refém do julgamento de outrem – eis algumas estratégias salutares que tenho adotado.
Sinceramente, sinto medo e uma certa apreensão, algumas vezes parece que nada do que eu faço faz sentido, outras vezes parece que só tomo decisões erradas e que não me ajudam, mas, de alguma forma, tenho esperança de que possa aparecer um dia de sol após esta noite escura.
A identificação de superdotado não é um troféu, não é “maravilhoso”, não me faz sentir melhor que outras pessoas e sequer eleva minha autoestima. Não pretendo colocar meu número de QI da avaliação no meu Curriculum Vitae nem pretendo me candidatar a filiação a sociedades de alto QI.
A verdadeira utilidade de toda esta história é a compreensão de algo indispensável para meu autoconhecimento para que eu possa buscar, a partir daí, uma vida mais realizada e mais funcional.
Fiz uma tatuagem na testa para ancorar, no meu próprio rosto, este momento de mudança. Estou lançando meu terceiro livro de poemas cujos versos trazem, também, a vivência deste processo. E encerro meu relato com este trecho:
“Eu pude interpretar a profecia
E decifrar o enigma da esfinge
A bruma dos mistérios se restringe
À densa tempestade que ora estia”
(Do poema “A deusa”, livro “A noite mais escura de minh’alma”, Alberto José)
Conheça este e outros dos meus trabalhos nas redes sociais abaixo.
Parabéns por tudo que venceu na sua trajetória e pelo propósito de se conhecer melhor para resignificar sua existência. Admiro sua coragem e simplicidade em dividir com outras pessoas tudo que vem descobrindo sobre sua condição e com isso ajudá-las a se sentirem melhor com elas mesmas.
Obrigado!!!!