Relato Pessoal: Alvaro Henrique

Fotografia de Alvaro Henrique por Pedro Franca

Alvaro Henrique por Pedro Franca

Sou Alvaro Henrique, e essa é a primeira vez que me apresento em público como uma pessoa com Altas Habilidades / Superdotação. Sou músico, e me dedico ao violão erudito. Trabalho como professor na Escola de Música de Brasília, atualmente em afastamento para estudos, cursando um doutorado em performance na University of Georgia (EUA). Durante a pandemia procurei tratamento psicológico. A profissional que me atendeu suspeitou que poderia ser neurodivergente e me solicitou fazer vários exames. Fui diagnosticado após os 40 anos.

Após o diagnóstico, minha mãe me falou que já com 9 anos um professor havia suspeitado que teria AHSD. Honestamente, não teria feito diferença para mim ter o diagnóstico na infância. Minha família já havia me matriculado numa escola que seguia o “ensino natural” – grosso modo, uma versão brasileira do construtivismo -, que já estimula a criança a aprender com autonomia e no seu próprio ritmo. Um dia normal de aula para mim consistia na professora explicar um conteúdo, em seguida comentar como realizar tarefas dispostas em quatro a seis mesas em que poderíamos circular livremente, na ordem desejada, com a única condição de ter de passar por todas ao longo do dia letivo. Já era, portanto, um ambiente de ensino acolhedor para PAHSD. O professor que desconfiou de AHSD trabalhava em outra escola, que minha família achou ser uma opção melhor, mas na semana seguinte voltei para esta primeira escola porque minha família preferiu acreditar que a escola nova era muito fraca, ao invés de considerar correta a suspeita do professor. De qualquer modo, minha vida escolar não teria sido diferente. Na adolescência, quando só sobram as escolas tradicionais, já estava estudando idiomas e música fora da escola, e essas são justamente duas áreas em que manifesto altas habilidades.

Curiosamente, foi justamente quando ingressei no ensino superior que os conflitos sociais e educacionais começaram. O que infelizmente não é uma surpresa, já que PAHSD só existem dentro do contexto escolar. Fora do ensino fundamental, não existimos – inclusive no ensino superior, um ambiente em que a presença de PAHSD é maior percentualmente que no ambiente que reconhece a existência de PAHSD. Os conflitos foram originados pela ausência de qualquer tipo de adequação, mas também pelo fato de, sem o diagnóstico, eu não tinha nem a mais básica informação para lidar com as situações à medida que elas se apresentavam. Numa realidade em que a música clássica e os cursos superiores de música são tão interconectados, esses conflitos deixaram marcas na minha vida profissional que persistem até hoje. Certamente algumas portas continuarão fechadas enquanto os atuais gatekeepers continuarem na ativa. É extremamente provável que, se tivesse o diagnóstico antes de entrar na universidade, desviaria de muitos conflitos desnecessários.

Portanto, buscar um diagnóstico faz diferença em qualquer estágio da vida. Hoje minha vida ainda não está perfeita – até porque não foi a condição neurodivergente que me levou a procurar um psicólogo -, mas entender que meu processo é diferente tem sido fundamental para seguir caminhando progressivamente rumo a soluções. Foi surpreendente como esta informação fez tudo fazer sentido. É como um parafuso na base de um móvel: é algo simples, pequeno, banal, mas sem aquele parafuso, o móvel se desmonta só com a ação da gravidade. Além disso, o autoconhecimento adquirido também no processo de entender como é ser no mundo uma PAHSD é extremamente revelador.

No entanto, não faz diferença buscar o diagnóstico em busca de algum reconhecimento. Fora do ambiente educacional ou do da saúde mental, não se (re)conhece sequer a existência da PAHSD. É como se com a formatura no ensino médio passássemos todos milagrosamente a nos tornar pessoas neurotípicas. E sabemos que isso não acontece. São blogs como este e iniciativas similares que permitem começar a reivindicar nossa existência enquanto seres políticos. Não no sentido de política institucional, cargos, mas no sentido Aristotélico de animal da polis: existimos em e na sociedade, não apenas nas escolas e consultórios.

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About Filipe Albuquerque Ito Russo

Filipe Russo é indígena agênere de Manaós, vivendo atualmente em Piratininga, autore dos romances premiados Caro Jovem Adulto (2022; 2012) e Asfixia (2014), assim como vencedore do concurso artístico O Olhar em Tempos de Quarentena (2020) e de prêmios de excelência acadêmica em Inteligência Artificial, Psicologia, Gamificação, Empatia e Computação Afetiva (2021). Revisore no periódico científico Revista Neurodiversidade. Especialista em computação aplicada à educação pelo ICMC-USP (2022), licenciade em matemática pelo IME-USP (2020). Fundadore e editore do website SupereficienteMental.com (2013-), blog com mais de 200 publicações, dentre relatos pessoais, ensaios e entrevistas, sobre neurodiversidade e superdotação ou altas habilidades. Pesquisadore em diversos grupos de pesquisa ao longo dos anos, atualmente atua no Círculo Vigotskiano, no Corpo de Ações Transformadoras: Abordando Realidades Sociais pela Educação (CATARSE) associado à UnDF e no TransObjeto à PUC-SP. Coautore nas antologias poéticas "43 Poetas Neurodivergentes", "ECO(AR): Poemas pela Sustentabilidade", "Instagramável: poesia visual, concreta e instapoema", "Poesia Política: vote", "Outros 500: Não queremos mais o quinhentismo", "poETes: Altas Habilidades com Poesia", "1001 Poetas", "Fotoescritos do Confinamento" e recebeu menção honrosa pelo ensaio Desígnio de um corpo, na 4ª edição do projeto Tem Livro Bolando na Mesa. Filipe possui aperfeiçoamento em Altas Habilidades ou Superdotação: Identificação e Atendimento Educacional Especializado pela UFPel e em Serviço de Atendimento Educacional Especializado pela UFSM (2022).
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2 Responses to Relato Pessoal: Alvaro Henrique

  1. Avatar de Wladimir da cunha barros Wladimir da cunha barros disse:

    Querido, todos sabemos que ao longo da vida, sempre teremos desafios, contudo muito corajoso de sua parte abrir seu coração e nos relatar este lado da sua individualidade.

    Mas deixo aqui, minha admiração pela sua pessoa e profissionalismo.

    abraços.

    wladimir Barros.

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