Supereficiente Mental: Ninguém nasce com consciência de sua própria superdotação, contextualize para nós a descoberta da sua.
Filipe Russo: Aos 16 anos, após me mudar para São Paulo, eu faltava as aulas e gabaritava as provas. Comecei a desconfiar que os outros talvez não fossem burros, mas eu quem era inteligente, especial e excepcionalmente inteligente. Eu então intuí minha superdotação, a diretora da escola sugeriu e a APAHSD confirmou.
SM: Quais são suas áreas de alta habilidade?
Filipe: Minha superdotação é acadêmica, lógico-matemática, verbo-linguística. Ela também abrange as artes (literatura, fotografia, design, tipografia, vídeo, teatro e música) e tem se manifestado com dimensões também de liderança, o que pode ser visto no meu trabalho com empreendedorismo, sou diretor executivo da SagaPro, A Edtech do Bem-estar Escolar. Há suspeita de multipotencialidade, dado também meu histórico diverso com esportes e atividades físicas.
SM: Como foi a sua avaliação formal de superdotação ou altas habilidades? Você considera que esse serviço profissional ainda é pouco acessível a boa parte da população brasileira?
Filipe: Minha avaliação, leia-se identificação formal/profissional, se deu pela Associação Paulista para Altas Habilidades/Superdotação (APAHSD) em 2007. Houve uns quatro momentos de avaliação.
Primeiro, de matemática: me pediram para fazer contas de soma, subtração, adição e multiplicação, avaliaram o tempo e a forma como esquematizei essas demandas, em seguida me deram um desafio de lógica: dado um conjunto de bolas e uma balança eu deveria desenvolver um algoritmo para identificar uma com o peso distinto das demais, eu tinha um minuto para resolver e resolvi em 10 segundos.
Segundo, de artes: me apresentaram um baralho, onde cada carta possuía a ilustração de uma obra de arte historicamente notória, eu deveria agrupar as cartas por semelhança e/ou diferença, e explicar quais semelhanças e diferenças eu utilizei para os agrupamentos.
Terceiro, de geografia e biologia: foi mais uma conversa informal sobre quais meus interesses e desinteresses com essas disciplinas.
Quarto, de português e criatividade: me pediram para durante uma hora redigir um roteiro de cinema, eu achei bem chato e escrevi uma história simples sobre uma viagem ao campo, a uma cidade constituída ao redor de um lago. Lembro de terem se decepcionado com meu enredo e terem dito que não viam talento naquela produção literária, sendo que eu produzia crônicas semanais para minha professora de literatura formada na USP e num acesso de revolta produzi um textão sobre diversos aspectos meus e da sociedade, com alto teor político, após isso a Ada reconheceu meus talentos literários.
Ao fim deste ciclo de confirmação não me foi oferecido nenhum programa, curso, tutoria, mentoria, apoio psicológico, psicopedagógico, jurídico, educacional, plano de estudos ou de desenvolvimento. Eu saí de lá sem nenhum encaminhamento ou devolutiva documental. O suposto grande argumento foi de que eu já estava desenvolvido demais e eles não possuíam nada adequado para alguém do meu nível e idade.
Sim, eu acredito que este serviço de identificação formal seja raro e quando presente ainda bastante limitado. Os profissionais que oferecem o serviço de modo particular costumam cobrar uma soma significativa, o que inviabiliza que muitas famílias obtenham um apoio de qualidade. As escolas e demais instituições educacionais, tanto públicas quanto privadas, deveriam fornecer avaliações contínuas dessa natureza de modo gratuito, desde as séries mais iniciais até os níveis mais avançados.
SM: Quais suas impressões sobre a vivência e (in)visibilidade de pessoas com altas habilidades no ensino superior? Há alguma experiência pessoal que queira compartilhar para exemplificar?
Filipe: Eu tive muito mais oportunidades no nível superior, na USP, do que em qualquer uma das várias escolas em que estudei e infelizmente não foi o suficiente. Por quê? Porque não há políticas efetivas e assertivas para a população com superdotação ou altas habilidades, o que há é uma grande concorrência por disciplinas eletivas e optativas, programas, cursos, vagas em grupos de pesquisa, bolsas e intercâmbios. Acomodações e programas especiais são inacessíveis, quando não inexistentes. Trabalha-se com uma economia da escassez. Na maioria das minhas experiências ora me subestimavam, ora me sobrecarregavam com conteúdo ou trabalho numa dimensão quantitativa, raramente qualitativa. As dimensões do desafio, da empolgação e do interesse não eram levadas em consideração na elaboração dos processos educacionais, científicos ou nas propostas de colaboração. Não raro o ego dos docentes se intimidava e competia com a dedicação acadêmica dos discentes. Impera uma lógica de poder estrutural e de alto desempenho, não de diversidade e criatividade. Apenas duas vezes na graduação encontrei docentes que me deram liberdade criativa e autoral de elaborar um produto acadêmico complexo, sendo que no último ainda sofri censura em um dado evento após ter meu trabalho selecionado para apresentação. Há uma política de castração que parte de egos frágeis e invejosos.
SM: O que motivou você a participar do grupo estudantil DiversIME e da Frente de Diversidade Sexual e de Gênero da USP? Como tem sido o engajamento da comunidade acadêmica?
Filipe: Entrei no DiversIME no fim do segundo ano de graduação, eu fui convidado por uma das participantes e desde então comecei a participar das reuniões. Enquanto indígena agênero eu considero essencial a existência de espaços de acolhimento e inclusão, sejam estes organizações estudantis e/ou institucionais. É uma forma de ocupar um espaço historicamente dominado por um grupo privilegiado, detentor dos saberes e práticas hegemônicos. O engajamento acadêmico é líquido como a nova geração, com períodos de maior e menor intensidade. Nos picos conseguimos organizar colaborações, trazendo convidados de coletivos externos à universidade para palestrar e dividir conosco seus saberes e práticas dissidentes. Organizamos cinedebates, rodas de conversa, festas, ciclos de palestras, intervenções urbanas, entre outros eventos. Quando a Frente de Diversidade Sexual e de Gênero da USP ressurgiu eu participei desde o início representando o DiversIME.

DiversIME
SM: Poderia contar mais a respeito de sua experiência de intercâmbio na Alemanha?
Filipe: Eu realizei dois intercâmbios na Alemanha, um de pesquisa e outro de graduação.
No que diz respeito ao de pesquisa, eu fazia parte de um grupo de pesquisa do Instituto de Química (IQ-USP), eu pesquisava redes de proteínas coexpressas de microalgas. Durante as férias de verão brasileiras eu tive a oportunidade de estagiar no Instituto Max Planck de Fisiologia Molecular Vegetal em Golm, próximo a Potsdam, uma vez que minha orientadora no Brasil me recomendou para o seu colega pesquisador da Alemanha. Lá eu desengavetei um de seus projetos de pesquisa e o levei adiante, se tratava do uso potencial de Multivariate Granger Causality (MVGC) com dados ômicos. Eu estudei as implementações de MVGC nas linguagens de programação python e R, explicando como os modelos são construídos, quais testes estatísticos são válidos e como interpretá-los.

The Max Planck Institute of Molecular Plant Physiology (MPI-MP)
No que diz respeito ao intercâmbio de graduação, eu fui para o departamento de informática da Universidade Técnica de Munique, lá eu me dividi em disciplinas da matemática e de ciência de dados. Eu aproveitei bastante a universidade, a maioria das visitas guiadas às cidades históricas e festividades tradicionais eu me inscrevia, incluindo idas ao planetário, opera, teatro e ballet. Desse modo visitei boa parte da Bavária e suas famosas cervejarias.
Nas duas oportunidades cursei aulas intensivas de alemão no contraturno noturno nos dias de semana.

Ich war auf dem Oktoberfest
SM: Você relatou ter canalizado sua criatividade nas áreas de literatura, dramaturgia, escultura, fotografia e música. Conte mais sobre sua imersão nas artes.
Filipe: Minha introdução à literatura veio por meio dos paradidáticos na terceira série do ensino fundamental, comecei a ler literatura ficcional e não ficcional extracurricular a partir da quinta série e chegou um momento que ler diversos livros de diversos autores não era mais o suficiente, eu precisava escrever meus próprios textos, livros e literatura.
A fotografia eu comecei sendo o fotógrafo da família na pré-adolescência, meus pais admiravam a firmeza das minhas mãos e meu enquadramento da câmera, mas o grande desenvolvimento fotográfico se deu quando obtivemos nossa primeira câmera digital que me permitiu experimentar a gosto sem custos adicionais de rolos de filme, logo em seguida veio a manipulação digital das fotos, prática que levo comigo até hoje.
Quando eu tinha 15, 16 anos eu escrevi uma novela e queria que ela fosse ilustrada, mas eu não desenhava o quão bem gostaria e os ilustradores cobravam um valor que eu não tinha condições de pagar. Um ano depois eu resolvi esculpir as imagens que eu tinha em mente em arame farpado, sentávamos eu e meu pai na sala de estar do apartamento e torcíamos, cortávamos e amarrávamos os segmentos de arame de acordo com as minhas instruções, era um trabalho dispendioso, com seus riscos.

Sweet Sixteen (2007)
No último colégio em que estudei presencialmente fui selecionado pelo professor de teatro para ser um dos protagonistas da peça a ser apresentada à comunidade escolar. Isso me despertou um talento cênico latente que eu tinha de interpretação, que só encontrara até então alguma vazão na literatura e na fotografia. A peça foi um sucesso! Cheia de aplausos, apertos de mãos, tapinhas nos ombros e elogios. Isso me animou para anos mais tarde produzir o vídeo teatral Matéria de Salvação ou O HORROR.
Eu me identifico muito com o som e a lógica do piano, durante um semestre tive aulas semanais e ainda pretendo retornar ao instrumento algum dia. Por enquanto sigo cantando e escrevendo letras de músicas, que ainda carecem de ser musicadas. O canto sempre foi reprimido na minha infância pela minha família, utilizava-se do riso para constranger quem ousasse se expressar dessa forma e eu sempre cantei, assim como a poesia é simplesmente algo que me vem, é como eu sinto, expresso, elaboro e dou vazão a uma forte carga emocional e intelectual. Na adolescência escrevi minhas primeiras músicas e só tinha 3 gravadas a cada tempo, pois era o máximo que a memória do meu celular suportava.
SM: Como você concilia atividades e projetos artísticos e responsabilidades acadêmicas e profissionais?
Filipe: É muito difícil, porque envolve um grande malabarismo de tempo, espaço, energia, dinheiro, cansaço, fome e sono. Mas é possível! Na dimensão ativismo neurodiverso eu tenho tentado manter o blog com uma publicação por semana, algo equivalente para minhas poesias. Ao mesmo tempo estas poesias atuais versam sobre tecnologia, o que pude relacionar com o momento histórico de pandemia em que vivemos e também com temas acadêmicos e de pesquisa. Enquanto diretor executivo da SagaPro é necessário que eu tenha uma visão estratégica de tendências econômicas, educacionais e tecnológicas, o meu vínculo com a academia e a pesquisa me permitem suprir parte dessa demanda. Eu divido as atividades enquanto diárias, semanais e mensais, por ordem de prioridade (prazos aqui são um fator importante) e tento separar o profissional/acadêmico/científico para dias úteis, enquanto guardo o fim de semana para os ativismos e as artes. Frequentemente faço listas temáticas, nas quais enumero os afazeres em tópicos e subtópicos, quebro as atividades em seus fatores mínimos. Com o tempo as divisões vão borrando e eu preciso retornar ao princípio reforçando-as, geralmente no fim/início do mês. A natureza inter, trans, multi, pandisciplinar dos meus interesses e projetos permitem um fortuito intercâmbio de práticas, saberes e analogias entre eles, o que possibilita uma certa reciclagem e combinação dos meus esforços.
SM: Você ou algum membro de sua família faz uso de algum acompanhamento psicológico? Em caso positivo fale como isso funciona para vocês.
Filipe: Não que eu saiba, mas na quinta serie e no primeiro ano do ensino médio eu tive acompanhamento psicológico. Lembro de ser tudo muito circular e pouco propositivo, mas do meu primeiro contato com o serviço na pré-adolescência obtive um grande conhecimento: a inveja envenena as pessoas e há quem jorre inveja de todos os poros.
SM: Você ou algum membro da sua família faz uso de algum acompanhamento psicopedagógico? Em caso positivo, fale como isso funciona para vocês.
Filipe: Não que eu saiba, no fim do primeiro ano do ensino médio e até metade do supletivo no ano seguinte eu fui acompanhado por uma psicopedagoga. Num primeiro momento ela me propôs montar post-its com meus mais diversos interesses e depois tentar agrupá-los em categorias mais abrangentes, feito isso eles ficariam reservados para um aprofundamento de estudos quando o supletivo acabasse. Sendo que eu nunca pude esperar e ela não soube dar suporte a essa minha demanda, portanto interrompi o acompanhamento e fiz meu próprio enriquecimento, aprofundamento, diversificação de estudos e práticas.
SM: Algum lema motivacional?
Filipe: Nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma. A árvore sabe como ela quer crescer e no fundo você também.
SM: Algum recado pra galera?
Filipe: Acredite na sua capacidade de autodeterminação. Só você sabe qual marca você quer deixar no mundo e na vida das pessoas ao seu redor, desenhe o seu destino e tenha a coragem de atravessar as vastidões sombrias pelas quais flui os seus talentos.
SM: Como uma pessoa com altas habilidades, diagnosticada ou autoidentificada, pode participar de seu blog com relatos e entrevistas?
Filipe: Quem quiser contribuir com o blog, seja com seu relato pessoal, entrevista e/ou ensaios, pode me contatar em: supereficientemental@gmail.com

Releitura de Véu do Entardecer de Filipe Russo por Luciano Brígida