Última atualização em 07/10/2022
Antes de tudo, confesso que escrever este relato é parte de uma cura (muito esperada) envolvendo entendimentos sobre mim mesma e sobre o funcionamento da minha mente. O que virá a seguir é um recorte dinâmico dessa jornada de autoconhecimento.
Quando criança, desempenhei o papel de aluna exemplar (que, aos olhos dos professores, parecia muito bem ajustada). Aos quatro anos, ansiava pelo ingresso na pré-escola porque aquele era o lugar que minha irmã mais velha frequentava todos os dias — e isso representava, naquela época, algo de mágico. Minha irmã mais velha era, a um só tempo, uma das pessoas que eu mais amava e minha maior fonte de inspiração; consequentemente, seguir seus passos era nada menos que uma honra. Fiquei dias com uma pastinha roxa a tiracolo esperando pelo momento de comparecer às minhas primeiras aulas.
Como faço aniversário em Novembro e pulei o Maternal, eu costumava ser um ano mais nova do que os meus colegas de classe — isto é, eu estava na escola “um ano adiantada”. Na realidade, isso foi um problema quando saí do Pré e ingressei na primeira série, que hoje equivale ao segundo ano. As primeiras escolas que fomos conhecer não queriam me aceitar porque me consideravam nova demais e achavam que eu não conseguiria acompanhar as aulas. Eu me recordo distintamente de achar isso muito engraçado e até incoerente, porque, na minha cabeça, não tinha nenhuma dúvida de que acompanhar as aulas não seria um problema. Por fim, após realizar um teste de rendimento comigo, uma das escolas procuradas pelos meus pais me aceitou. Durante o teste e para me estimular, a instrutora bondosamente disse que eu poderia fazer determinada conta que me foi pedida utilizando os dedos das mãos — acho que ela falou isso porque eu permaneci estática por um momento enquanto ela me avaliava, mas o fato é que eu não tinha paralisado, só estava concentrada fazendo as continhas em minha cabeça.
Naquele ano, não só passei no teste de rendimento como estava mais avançada que os demais alunos no processo de alfabetização. Isso foi algo que eu nunca questionei, apenas fazia parte do meu dia a dia. Além de tudo, eu estava simplesmente seguindo os passos da minha irmã mais velha, que eu idolatrava e que também era a melhor aluna da sala dela.
Até a quarta série e já em outro colégio, eu havia sido encarregada de escrever bilhetes pontuais para os pais dos alunos (uma decisão tomada pelo meu domínio da escrita e da caligrafia, imagino). Eu também tinha que passar de carteira em carteira verificando a lição dos meus colegas. Admirava bastante minha professora e o recebimento dessa tarefa, eu pensava, tinha a ver com ser uma aluna sensata, o que deveria ser bom; simultaneamente, porém, eu me sentia desconfortável com aquela função pelos seguintes motivos (e aqui não critico minha professora de forma alguma, apenas observo as limitações do sistema educacional no qual estávamos todos inseridos):
Primeiro, eu tinha um lado levado e brincante que não exatamente se animava a repreender os outros por não terem feito o dever de casa. Depois, eu começara a conhecer os conceitos de ética (considerando-se, é claro, a ética infantil que podemos experimentar tão jovens), e, diante disso, sabia que não deveria favorecer os meus amigos quando checasse suas lições — muito embora, por instinto, eu quisesse cuidar deles.
Na prática, creio que eu, desde então, já achasse que a escola melhoraria muito caso se afastasse da dimensão exacerbadamente racional em que atuava e se aproximasse dos alunos (ou das responsabilidades incumbidas a eles) de uma forma mais humana.
Àquela altura, eu era uma criança meiga, gentil, carinhosa, apaixonada pela minha professora, pelas minhas canetas coloridas, pelos meus amigos e pelo fato de que NÃO queria mais ir às aulas. Cheguei a ter diálogos tensos com meu pai por causa disso; eu preferia ficar em casa assistindo aos meus desenhos favoritos, brincando e estudando sozinha, algo que eu acabava fazendo de qualquer jeito — mas vamos chegar lá.
Deve ter sido por volta dos primeiros anos escolares que, segundo minha mãe, eu escrevi algo no computador e a chamei para ler. Enquanto isso, ela não acreditava que uma criança daquela idade poderia ter escrito um texto tão complexo. Minha família vem do Nordeste e sempre os ouvi falando — com orgulho e postura contrária à xenofobia que vigora em São Paulo — que as pessoas da Bahia eram muito inteligentes (a exemplo dos meus próprios pais, o que frequentemente atestei, mas também eram citados artistas, personalidades e escritores baianos). Mais uma vez, eu não achava que a inteligência era algo a ser colocado em pauta, apenas uma habilidade intrínseca. Com 16 anos, um dos meus primos mais próximos (crescendo, só tive contato assíduo com três: um médico, um engenheiro e um advogado, aquela tríade clássica), que chegou posteriormente a ter uma experiência como professor assistente em Harvard, conquistou, quando prestou vestibular no Brasil, o 2° lugar na classificação geral (a que englobava todos os cursos) dos aprovados, e isso deixava meus tios felizes, mas não exatamente surpresos, penso eu.
Nas próximas séries, eu continuei a vivenciar as demandas que eram comumente designadas ao melhor aluno da classe. Fui representante de sala e participei da construção da chapa eleita ao Grêmio do Colégio — quando ele finalmente desenvolveu um. Era comum também que eu participasse de concursos (de redação, artes e até de palavras cruzadas!) fora da escola, e eu frequentemente os ganhava. Tenho até hoje um modelo de Barbie que foi confeccionado por uma estilista especialmente para mim como prêmio em uma dessas ocasiões. Eu me lembro claramente de ter receio de que não ganhasse mais os concursos porque meu nome já estava ficando “carimbado demais”. Existiu, naquela época, uma outra iniciativa escolar — a Jovens Construindo a Cidadania — na qual, mais uma vez, cheguei a me envolver, mas onde, pelo que me recordo, não foi possível desenvolver nenhum trabalho duradouro em direção ao que havia sido proposto.
Embora meus colegas não soubessem (e eu achasse que não podia falar a respeito), uma camada da minha vida pessoal era mantida propositalmente nas sombras e, considerados diversos fatores, eu cresci em um ambiente bastante disfuncional. Em adição a isso, minhas emoções estavam profundamente ligadas ao meu rendimento escolar — à parte de toda a racionalidade, a verdade é que emoções são extremamente valiosas para mim. Essa competição brutal entre pensamento e sentimento viria a se acirrar um pouco mais adiante, a partir do Ensino Médio.
Na oitava série, eu fiz um curso no contraturno do período escolar em uma instituição de cursinhos da minha cidade (consegui a bolsa máxima disponível na prova de admissão). Nos simuladões organizados por lá, também era frequente que eu ficasse entre os primeiros colocados (em termos claros, eu só precisei entender a lógica segundo a qual os simulados funcionavam; ela era algo que, na minha cabeça, acabava se repetindo); essa situação, mais uma vez, rendia prêmios. Um dos que eu mais gostei de ganhar foi um ingresso para a pré-estreia do filme Zoro.
Ao final do ano, embora eu não quisesse estudar em um colégio técnico, meu pai era a favor de eu prestar a prova. Na Etecap, um dos principais colégios técnicos de Campinas, passei em 3° lugar na classificação geral: fui, ao mesmo tempo, a primeira mulher e a primeira estudante de uma escola pública a se classificar, seguida em 4° lugar (com a mesma pontuação, embora eu não tenha certeza do critério de desempate) por uma de minhas melhores amigas. Fiquei feliz por mim e por ela, mas já sabia que a Etecap não era o lugar para onde eu gostaria de ir.
Antes de ingressar no Ensino Médio, portanto, fiz um teste de bolsa em um prestigioso colégio que tinha a fama de preparar estudantes para universidades internacionais. Na época, eu achava que cursar uma universidade fora do Brasil era o que queria… um caminho estimulante para minha vida acadêmica.
Vindo de uma escola pública e com uma bolsa contundente, ingressei no colégio dos sonhos e conheci uma jornada de grande crescimento por lá. Tenho muita gratidão pelo colégio, por seus professores e mentores, e levo lindas recordações do maravilhoso grupo de amigos que formamos; eu os guardo em meu coração até hoje. Parte do que me motiva a escrever este relato, aliás, é a possibilidade de compartilhá-lo com eles, já que, devido aos meus questionamentos que estouraram no terceiro ano, eu me afastei de meus amigos completamente e de forma bastante abrupta. Não tinha nada a ver com eles e tudo a ver comigo e com meu longo processo de descoberta da superdotação, que só veio a ter seu desfecho anos depois.
No colegial, fosse em exatas, humanas ou biológicas, eu me destacava nas avaliações, que eram constantes. Por outro lado, a centelha do meu incômodo, já presente, em relação ao meu processo de aprendizagem, começava finalmente a queimar. Eu logo percebi que não aprendia os conteúdos durante a aula em si, mas que desenvolvia um método particular para aprender tudo em casa, sozinha, sempre um dia antes da prova — e, mesmo assim, eu a gabaritava. Era frequente que eu passasse as aulas fazendo anotações de outras matérias — cujas folhas havia perdido, pelo motivo que fosse (minha mente acelerada nem conseguia manter um fichário organizado). Eu me lembro de uma prova de física que um de nossos professores anunciou ser a mais complexa do currículo do ensino médio e na qual nos desafiou a passar — que dirá gabaritar. Eu me lembro também de, um dia antes da prova, perceber que eu não sabia nada dos conceitos envolvidos (minha mente havia divagando para qualquer lugar aleatório durante as aulas). Mais uma vez, em um fim de tarde e uma noite — pois tínhamos provas diárias —, eu estudei em casa para entender a lógica do assunto: tudo era sempre sobre a lógica do assunto. Como resultado, fui uma das únicas alunas do ano a gabaritar.
Tinha sucesso também nas provas de humanas, em que minhas notas dez, segundo meu exigentíssimo professor se história (famoso por não entregar um dez assim tão facilmente), estavam “… se tornando uma constante”. Em retrospecto, penso que meu problema era justamente a percepção de que eu poderia ser boa em qualquer matéria — mas que, paralelamente, não carregava comigo mesma um real senso de identidade com nenhuma delas. Eu não sabia do que gostava, ou então gostava de tudo. Desde que li sobre ele em uma revista, a única pessoa com que, efetivamente, conseguia me identificar nesse quesito (e aqui faço TODAS as ressalvas necessárias para indicar que NÃO ESTOU nos equiparando, apenas partilhando que empatizo com a mistura aparentemente caótica em seus cadernos) estava morta há muito tempo, e era Leonardo da Vinci.
Naquele primeiro ano, senti que era meu dever informar à coordenadora que eu não sabia muito sobre a língua inglesa. Na escola pública, todos os anos o currículo da matéria girava em torno do mesmo: verbo to be. Era engraçado como as aulas sempre se repetiam, quer estivéssemos na quinta ou na oitava série. Ao final do colegial, no entanto, e muito devido ao meu gosto pelo aprendizado de outras línguas (adoraria aprender várias ainda hoje!), eu já estava escrevendo cartas em inglês para meus amigos que queriam fazer intercâmbio e eventualmente cheguei a dar aulas particulares da língua.
Por outro lado, quando estávamos no terceiro ano, foi pedido que escolhêssemos uma das três áreas do conhecimento para participarmos de nossas turmas de aprofundamento durante a tarde (eu estudava de manhã). Não me esqueço da notificação que recebi da coordenadora porque praticamente todas as outras pessoas (senão todas) já sabiam em qual turma de aprofundamento estariam, mas eu não. De fato, eu simplesmente não conseguia escolher, e estava sofrendo.
Por trás dessa indecisão, se eu fosse visceralmente sincera comigo, teria admitido que a área na qual eu desejava me aprofundar era a de humanidades, que tinha aulas especiais de desenho técnico para quem desejasse seguir uma carreira nas artes (artes, em suas variadas formas, fascinavam-me). Era isso o que meu coração me diria para fazer, mas, com o meu histórico escolar, essa não parecia ser uma alternativa para mim. As expectativas eram muito altas e muito mais tradicionalistas (lembram-se da tríade medicina/direito/engenharia?).
É claro que essa panela de pressão tinha hora para explodir… e ela explodiu ali mesmo, ao final do Ensino Médio. Passei a achar que havia algo profundamente errado dentro de mim, não sentia que o sistema educacional conseguira acolher a complexidade do que eu acreditava ou que eu experimentava e, diferentemente dos meus outros colegas (e para minha própria surpresa), não havia um curso ou universidade específicos que eu acreditasse que abarcaria minhas buscas enquanto estudante (apesar de muito ter pesquisado). Além de tudo, eu sentia que havia algum outro tipo de habilidade — diametralmente oposta ao que aprendi em todas as escolas — que eu precisava trabalhar, como se meu cérebro e meu corpo estivessem prestes a se separar de forma irrevogável caso eu falhasse em parar a bola de neve predominantemente intelectual que descia a montanha da minha vida naquele instante. Como escrevi antes, ao lado do meu alto desempenho estudantil, as emoções (e a comunicação através delas) sempre foram algo que estimei, algo que queria cultivar. Esse era o ponto que não podia negar para mim mesma, para o meio acadêmico ou para o mundo. Eu compreendo a lógica e abertamente me sirvo dela, mas o brilho, penso eu, está em compreender a sensibilidade que atravessa a lógica.
Apesar de me formar com o histórico impecável (permaneci uma aluna consciente do começo ao fim), ao abrir a Caixa de Pandora naquele terceiro ano de Ensino Médio, o caos acabou sendo definitivamente instalado. Meus pais achavam que eu estava passando por algo temporário, que eu poderia me dar um tempo para “me resolver” e fazer um cursinho no ano seguinte. Isso clarearia minhas ideias, pensavam, enquanto eu reconhecia que estávamos todos bastante confusos; porém, tentei escutá-los.
Abalada e, de certa forma, empurrada, fiz a prova que me garantiria a bolsa integral no cursinho do meu prestigioso — e querido — colégio. Recebi os parabéns dos secretários com um sorriso triste. Eu gostava muitíssimo de lá, mas havia algo grande demais acontecendo dentro de mim, uma força da natureza que havia despertado e que não poderia ser contida.
Não muito após começar, portanto, deixei de ir ao cursinho, o que era considerado absolutamente chocante para uma aluna como eu. A psicóloga e orientadora do cursinho ligou para minha casa múltiplas vezes tentando entender o que estava acontecendo, e acredito que ela genuinamente queria ajudar. Era angustiante não conseguir atender suas ligações porque eu sabia, dentro de mim, que o que estava acontecendo não poderia ser explicado. O sistema educacional havia falhado comigo (friso aqui que não me refiro ao colégio em que eu estudava e que, de fato, respeitava profundamente, mas ao sistema educacional como um todo; ele ainda não disponibilizou às escolas ferramentas para que possam acolher melhor os alunos com AH/SD), e eu tinha anos dessa falha para corrigir, da forma que fosse, e aparentemente sozinha.
Eu precisava, mesmo que temporariamente, afastar-me da Academia para me descobrir — por mais que eu também me encantasse por ela. Outra unidade do meu colégio havia formado pessoas como Tabata Amaral e Bel Pesce, mulheres com as quais, à parte de qualquer posicionamento pessoal ou político, eu viria a sentir um nível curioso de identificação. Era como um espelhamento, como se me visse em parte delas, ao mesmo tempo em que via ali, naquelas pessoas, um esteio que eu não havia ainda conseguido desenvolver, algo para o qual seria necessário certo apoio.
Um dos momentos mais emblemáticos dessa virada de propósitos foi o dia em que destruí tudo o que eu tinha em casa que se relacionasse a certificados ou medalhas de mérito por minha carreira estudantil (e o termo que utilizo aqui, carreira, é, para mim, o que mais se aplica porque assim o sentia). Eu chorei copiosamente enquanto rasgava e quebrava tudo aquilo à procura de qualquer alívio através da manifestação física de um conflito que eu mesma não conseguia verbalizar.
As artes, expressões do meu barulho interior, passaram a ser, desde então, luz e aterramento. Uma de minhas professoras de ballet, conceituada bailarina de Campinas, chegou a me dizer: “Vai haver um momento em que eu não saberei mais responder às suas perguntas”. Eu tinha ganas de entender o mundo na pele e não conseguia evitar ir fundo demais. Eu me encontrava na profundidade, o que vinha fazendo desde o ensino fundamental, para ser sincera, quando comprei um livro de física com conteúdos que iam até o currículo do ensino médio para que eu pudesse enxergar globalmente “qualé que era a daquela matéria”. Minha professora de teoria musical, por outro lado, também uma das grandes referências de onde eu morava, aluna direta de Osvaldo Lacerda (renomado compositor brasileiro), contou que nunca havia visto um aluno terminar o livro teórico tão rápido quanto eu.
Tudo seria lindo se não estivesse péssimo já que, no fundo, havia algo para mim torturante em relação ao processo de aprendizagem, algo que só era contornado (e não exatamente resolvido) quando eu desenvolvia a minha própria metodologia de estudo — agora, imagine você o desgaste que é precisar desenvolver uma metodologia sobre tudo e para tudo!
Nesse período, também escrevi e ilustrei meu primeiro livro, uma coletânea poética que publiquei independentemente pelo Clube dos Autores. É uma obra curtinha, intimista e bem peculiar porque não segue um padrão para o “fazer poético”. Alguns poemas são bem, vamos dizer assim, parnasianísticos (risos); outros são bastante livres em forma e rima, ou simplesmente uma exteriorização em prosa poética. Quando conversei com uma amiga que circula no meio literário, ela me disse que essas particularidades podem dificultar a sua publicação por um selo mais tradicional. Eu concordo que a apresentação dos poemas os faz contrastar incomumente entre um e outro, mas essa foi justamente minha intenção: mostrar que podemos fazer poesia de muitas maneiras diferentes.
Um dos trechos do livro, que se chama Rio Perene, traz uma angústia que conheço bem:
“A sede que há em de mim
Nunca poderás sanar.
E não posso implorar por água para sempre.”
Aplicada ao contexto de que falamos agora, seria essa a minha dor em relação ao sistema de ensino atual. Uma sede que não pode ser sanada pela educação a que temos acesso.
Eventualmente, eu cheguei a procurar por psicólogos que trabalhassem na área da aprendizagem. Eu queria entender o que havia de errado comigo e como consertar. Queria entender como eu podia me tornar especialista em um assunto da noite para o dia e, também da noite para o dia, “desespecializar-me”. Minha mente em instantes limpava as informações da minha memória, substituindo-as por um aprendizado novo, e isso, junto a meu interesse por múltiplos e variados conhecimentos, fazia com que eu pensasse que minha memória era um lixo, que eu era uma farsa, que tinha algum problema de aprendizagem. Sentia que estava enganando a todos e a mim mesma. Também comentei sobre minhas angústias com um médico pediatra e ele sugeriu que eu poderia ter uma forma incomum de dislexia. Assim, fui orientada a falar com uma neuropsicóloga e a fazer alguns exames que, somados, chegavam aos milhares de reais. Como minha família não sabia de nada daquilo (eu não estava preparada para contar a eles) e como não podia, na época, bancar os exames sozinha, acabei não os fazendo.
A penúltima parte da minha saga em busca de respostas me levou até a UNICAMP. Por lá, havia a condução de um estudo sobre aprendizagem (a temática específica do estudo eu desconheço). Depois de falar com funcionário atrás de funcionário, depois de circular por quase todo o departamento, fui informada de que não havia vagas abertas para o estudo e/ou apenas um grupo específico de pessoas estava sendo analisado. Acredito que um trabalho incrível foi orquestrado por aqueles profissionais; no entanto, devido a questões de timing e de outras especificidades, eu não poderia ser integrada.
Anos depois, conheci uma psicóloga que trabalhava com superdotação. Foi ela quem me identificou como superdotada e quem me ofereceu meus primeiros momentos de conforto. Eu me sentia bem ajustada demais para ser considerada um aluno problema e má ajustada demais para seguir o modelo de estudos tradicional e socialmente esperado. Em outras palavras: eu não tinha lugar. Enquanto isso, eu me rasgava por dentro.
Em uma TEDx Talk, eu felizmente já havia conhecido um movimento que propunha que as pessoas poderiam hackear a própria educação, e assim, com todas as dificuldades imagináveis geradas pela empreitada solitária, vinha procurando fazer isso comigo mesma. Foi nesse contexto que recebi as palavras daquela especialista.
Quando ela me disse “Você tem um cérebro bem neurodivergente…”, senti a frase chegar como um jato de oxigênio direcionado a pulmões que precisavam muito respirar. Eu estava me afogando, e então não estava mais… aquela sentença era palpável, concreta e, mais do que isso: ela mostrava que havia uma comunidade de pessoas como eu, uma comunidade na qual eu poderia me encontrar.
Ainda estou engatinhando nessas novas descobertas, mas celebro ter topado com uma profissional que me identificou e que, consequentemente, possibilitou que eu fizesse parte de uma comunidade em que podemos nos entender e apoiar mutuamente. Além disso, como tenho muito interesse pelo funcionamento do cérebro humano, estou animada com a possibilidade de, de alguma forma, andar ao lado de uma grande empresa que trabalha com treinamento cerebral — isso porque a psicóloga que me identificou é uma de suas representantes.
Hoje, ao mesmo tempo em que acho importante trazermos visibilidade ao assunto, também procuro não glamorizar a superdotação (afinal, tudo que é diferente acaba tendo um apelo meio hollywoodiano). Honestamente falando, na contramão dessa impressão de “superpoder”, sei na carne as — várias — dificuldades que uma forma diferente de ver e experimentar o mundo pode nos trazer. Por isso, ao longo dos próximos anos, gostaria de dar mais voz àquilo que está nos bastidores — e não no famigerado palco — do universo das altas habilidades.