Eu me chamo Aline, como a música francesa que inspirou meu pai a dar-me este nome. Antes de começar a contar a minha história, preciso ir um pouco mais atrás e contar a história do meu pai. Seria injusto e impossível falar sobre mim, sem falar sobre ele que foi minha inspiração e o responsável por eu ser quem sou. Meu pai nasceu em 1942 em uma fazenda onde meus avós trabalhavam. Foi criado no mato, aprendendo o trabalho duro na terra. Ali mesmo teve contato com um acordeão que aprendeu a tocar ainda muito pequeno, sozinho. Tirava as músicas de ouvido e demonstrava grande talento. Chegou a ser convidado para tocar na rádio no Rio de Janeiro, mas acabou não indo, ou por falta de coragem de deixar meus avós, ou por ter sido impedido pelo meu avô. Não sei ao certo qual a versão mais correta. O certo é que esse homem que só havia aprendido o básico nos três anos que frequentou a escola, tinha algo a mais que eu só viria a compreender há um ano atrás, em julho de 2020. Ele consertava coisas, criava coisas, tinha grande habilidade manual e era muito intenso. Se era para ser vendedor, ele seria o melhor possível, se iria ouvir música, tinha que ser direito, intenso, sem bate-papo, tinha que mergulhar. Se estava junto à natureza, tinha que sentir cada fibra das árvores. Este era o meu pai.
Agora sim sobre mim. Nasci em 1974, prematura com apenas 1600gr, peso que, naquela época, era considerado extremamente baixo e representava um grande risco de morte. Antes de completar um ano eu já falava e sempre fui considerada pela minha família uma criança geniosa, emburrada e pouco inteligente. Lembro-me de haver desejado não ser bonita, não ter olhos claros, mas sim ser inteligente como meus irmãos, que notoriamente destacavam-se dos demais. Meus irmãos são ambos de exatas e desde cedo faziam contas enormes de cabeça, jogavam xadrez, demonstravam conhecimentos que a maioria das pessoas desconhecia. Eu, por outro lado, estava sendo criada para ser dona de casa: lavava, encerava, ajudava na cozinha, bordava, pregava botões, etc. Pouco tempo sobrava a mim para desenvolver habilidades ou para mergulhar no meu mundo, mas sempre que podia, lá estava eu com minhas bonecas criando todo um mundo paralelo que me envolvia a ponto de não escutar o mundo a minha volta. Aos 7 anos entrei para a escola, algo que vinha pedindo minha mãe fazia tempo. Ali sentia-me tão feliz que esquecia do mundo fora da escola. Certa vez fiquei para trás no pátio porque, de tão envolvida com minha brincadeira de girar no ferro da trave do gol, não ouvi minha professora nos chamando. Quando dei por mim estava sozinha ali e saí correndo para a sala. Até hoje tenho vontade de chorar quando conto isso. Lembro-me das atividades que fazíamos, da sensação de segurar o giz de cera, de pintar sobre o celofane transparente. Lembro-me das plantas que haviam na nossa sala, do cheiro da sala de aula e da minha lancheira; de plástico vermelha e branca com patinhos em relevo, com uma garrafinha também branca que saltava da tampa. Lembro-me do guardanapo que embrulhava meus biscoitos maisena com manteiga e do suco de maracujá de diluir que levava quase sempre. Lembro-me até da faquinha de serra pequena que minha professora usava para cortar a maçã em quatro e retirar o miolo para mim.
A escola tornou-se para mim um refúgio, um local onde me era permitido aprender e ler. Costumava visitar a biblioteca com frequência e via orgulhosa a minha ficha ir enchendo de títulos, entre eles, Nicolau teve uma ideia, E o vento levou o balão da joaninha e tantos outros. Lembro-me do rosto de quase todos os colegas de escola. Quantas vezes passei por eles já adulta e pude constatar, com tristeza, que eles não se lembravam de mim como eu deles. Em alguns momentos de tristeza via injustiças e racismo sendo praticado e saía em defesa. Na escola gostava de estar sempre próxima aos professores, mas por timidez quase não comentava nada ou fazia perguntas. Afinal, não era eu, segundo pessoas muito próximas, tão limitada? Bem, cresci, e com o tempo as atribuições em casa só aumentavam. Minha estratégia para sair-me bem nas provas era prestar muita atenção nas aulas e estudar pouco ou quase nada.
Minhas intensidades eram vistas com muita estranheza pelos meus pais e eu não os culpo por isso. Eu lambia a parede do quarto próxima ao meu berço quando pequena, não resistia às maçãs na fruteira e dava uma mordida em cada uma, mesmo sem fome, só para sentir o gostinho delas. Dormia circundando a barra de um cobertor que tinha com os dedos porque a sensação geladinha do cetim me dava conforto e me ajudava a adormecer. Escondida, criava coreografias para as músicas que eu gostava, me imaginava em uma apresentação de sucesso. Minha amiga imaginária, Cláudia, me acompanhava em meu treinamento para o circo (que custou a barra de pendurar as toalhas no banheiro). Eu via imagens diferentes em paredes, conseguia olhar para um objeto muito conhecido de forma inédita como seu eu pudesse mudar a minha câmera interna de lugar. Essa era eu, briguenta porque não suportava injustiças, revoltada porque queria tempo para ler e estudar e não tinha por ser mulher e ter obrigações que os homens não tinham. Sonhadora porque desejava voar mais alto.
Dando um salto agora para a minha adolescência, nesse período fui muito tímida e retraída. Hoje noto que no momento em que deixei de brincar, perdi o que tinha em comum com as demais crianças com as quais convivia. Se antes eu já gostava de estar com meu irmão e com os amigos dele, que tinham papos bem mais interessantes, agora mais ainda. No entanto, tive que lidar com a realidade de que meu irmão estava em outra fase e que a última coisa que ele queria, estando com 18 anos, era uma irmã de 13 por perto. Nesse período senti-me um pouco perdida. Eu tinha uma amiga e tentava de certa forma seguir seus passos, mas a única coisa que conseguia era sentir-me ainda mais peixe fora d’água. Eu era daquelas que sempre ajudava os colegas com informação para as provas, explicava conceitos, ensinava o que sabia. Não chegava a ser a melhor da classe, pois sempre era algum menino. No entanto, era a que mais se destacava entre as meninas. Não que eu buscasse a comparação, mas os meninos eram bastante competitivos e sempre perguntavam minhas notas. Houve um período também que tinha comigo um curso de alemão debaixo do braço ou um livro para ler durante o recreio. Os livros eram sempre acima da minha faixa etária, emprestados de um amigo ou de bibliotecas.
Não me importava por ser diferente. Na verdade, achava que o fato poderia ser explicado por ter tido grande influência dos meus irmãos, por ter lido muito na adolescência e infância, por ter tido, no geral, uma criação diferente: não curtíamos carnaval, nem futebol, festas barulhentas ou lugares lotados. Então como afinal cheguei à superdotação? Eu sou mãe de três: duas meninas de 24 e 19 anos e um caçula temporão de 8. Essa última pecinha que faltava em nosso quebra-cabeça nos ajudou a desvendar tudo. Ele aprendeu a ler sozinho e fazia contas de cabeça desde pequeno. Sempre foi muito curioso e rápido para aprender coisas novas. Além disso tudo, muito explosivo e intenso. Quando ele começou a recusar-se a ir para a escola ou, até mesmo, ter febre ou outro mal-estar para não ir, vimos que havia algo de muito errado. Não era bullying. Era a escola que não o estimulava ou entendia. Ele não estava sendo acolhido. Buscamos uma psicopedagoga que pré-identificou a superdotação dele que foi posteriormente confirmada por especialistas. A partir deste ponto para identificar mais pessoas da família foi um pulo. A minha identificação só veio depois de conversas com minha terapeuta, com as especialistas e com um dos meus irmãos. Até hoje leio o resultado dos testes frequentemente para acreditar porque nunca me senti inteligente ou mais ágil que os demais. Sempre justifiquei cada conquista como sendo sorte, estar no momento certo na hora certa, esse tipo de coisa.
Não cheguei tão longe quanto gostaria, mas entender hoje minha intensidade e aprender a manejá-la, entender o vazio que sempre senti na mente e até no espírito, a angústia que senti em todos os momentos que não pude ler ou estar aprendendo algo, representam um alívio gigantesco. Sou intensa sim e isto é bom! É minha mola propulsora e não uma falha no meu caráter. Choro fácil, amo intensamente, me envolvo nas coisas com a alma porque esta sou eu. Eu sou assim e ponto. Entre minhas pequenas conquistas estão um primeiro lugar no vestibular na UFMS, o aprendizado do espanhol em poucos meses para acompanhar um mestrado, o empreendedorismo (trabalho por conta própria sem medo), meus filhos que são maravilhosos, e ter ajudado a outras pessoas a encontrarem seus caminhos também através da minha sensibilidade. Não falo das minhas conquistas com soberba, não acho que eu seja melhor do que os demais, mas sim passei pela UFRJ e me formei em 2012 quase sem conseguir estudar, virando noites escrevendo trabalhos, saindo às 5 da manhã de casa e chegando às 9h30 da noite porque tenho uma garra danada. Eu tenho que ter muito orgulho disso porque antes da identificação eu praticamente me desculpava com todos por existir, sentia-me mal por tirar notas mais altas ou por entender um poema que ninguém mais parecia compreender. Eu dizia que era a idade e que entendia porque tinha mais bagagem. Estou aqui ensaiando encontrar o meu espaço no mundo, não por ser melhor, mas porque todos temos o direito de sermos respeitados dentro de nossas singularidades. Seja como acha que os outros querem que você seja e sofrerá. Seja você mesmo e atraia para junto de você as pessoas certas com as quais terá uma convivência saudável e plena e será mais feliz e leve. Sim, meu nome é Aline, tenho 46 anos e sou superdotada nas áreas linguística, naturalista e intrapessoal. Muito prazer mundo.