
Oriana Comesanha
Supereficiente Mental: Ninguém nasce com consciência de sua própria superdotação, contextualize para nós a descoberta da sua.
Oriana Comesanha: Descobri em uma avaliação neuropsicológica, quando fui investigar dificuldades com noção de tempo, ordenação de eventos, números e letras, entre outras coisas. Eu achava que tinha dislexia e tdah, mas descobri que não era bem isso.
SM: Quais são as suas áreas de altas habilidades?
Oriana: Minha avaliação não foi clara com relação a isso, mas falou das minhas habilidades precoces e acima da média (arte, motricidade e linguagem – apesar da dificuldade em colocar as letras na ordem certa dentro das palavras quando as escrevo) e do meu QI (142). Acho que essas são minhas áreas.
SM: Como foi a sua avaliação formal de superdotação ou altas habilidades? Você considera que esse serviço profissional ainda é pouco acessível a boa parte da população brasileira?
Oriana: Foi uma avaliação com neuropsicóloga longa. Foram umas 16 ou 18 sessões. A profissional se sentiu bem desafiada com o meu caso, levou para supervisão e falou que precisou consultar os profissionais que ela julgava os mais especializados, pois teve dificuldade por conta da dupla excepcionalidade. Ela usou testes padronizados, escalas e protocolos nacionais e internacionais, conversou com minha mãe e esposa. Acho que foi bem completo. Depois disso, consultei outra neuropsicóloga e dois psiquiatras, para confirmar o TEA. Foi um processo longo, mas foi importante para mim ter percorrido cada passo. Hoje estou me formando em neuropsicologia, muito inspirada por este processo que passei.
Sobre a segunda pergunta: sim. Acho que todo serviço voltado à promoção da saúde emocional e para funções mais nobres do funcionamento do nosso organismo é ainda muito elitizado, infelizmente. Pude realizar esta avaliação pois tenho condições que a maioria das pessoas não tem e porque me programei financeiramente para ela, já que o que me levou à avaliação foi a necessidade de esclarecer “déficits” que julgava impactantes para minha vida profissional e pessoal.
SM: Quais são as suas áreas de formação acadêmica? O que lhe despertou o interesse?
Oriana: Sou psicóloga. Tenho um grande interesse nos fenômenos que me parecem misteriosos: o funcionamento da dimensão temporal, os comportamentos de algumas pessoas, as diferenças individuais, as diferenças entre as espécies, por que temos linguagem… Sempre tive esta curiosidade em saber sobre linguagem. Aos 15 anos, li sobre uma pesquisa de linguagem com macacos e resolvi que queria estudar aquilo. No meu 1° semestre na faculdade, estava no laboratório de psicologia estudando comportamento simbólico em macacos-prego. Daí, fui para o desenvolvimento atípico e me apaixonei por estudar sobre autismo.
SM: Quais barreiras capacitistas são ou foram impostas à sua trajetória educacional e profissional?
Oriana: De uma maneira geral, consigo perceber que todas as minhas experiências neste sentido têm a ver com a insensibilidade do mundo com relação a quem eu sou. Com uma invisibilidade triste. E uma tentativa diária minha de me impor ser alguém menos vulnerável às coisas ruins do mundo e acabar me sufocando com tantas capas de proteção e disfarces. Foram barreiras emocionais bem significativas.
SM: De que forma o seu autismo é lido socialmente?
Oriana: Acredito que a maioria das pessoas não me lê enquanto pessoa autista. Algumas podem achar que sou diferente da maioria das pessoas, mas não tenho certeza disso. Depende muito de onde a pessoa me conheceu e do quanto eu posso estar camuflando na interação com ela. Me considero muito boa em camuflagem, portanto, acho que a maioria com quem convivo não tem oportunidade de me ler realmente. Os que sabem com certeza do meu diagnóstico são meus familiares, amigos próximos e profissionais que me acompanham (E agora quem ler o blog). Não é um segredo, é uma intimidade. Não saio por aí falando tudo sobre mim, mas, se for relevante, falo.
SM: O que é camuflagem no contexto da neurodiversidade e da xenofobia neurocognitiva?
Oriana: Bem, vou explicar como é para mim a camuflagem.
Ela começa como uma máscara desconfortável que você põe para tentar se sentir confortável ao fazer os outros ficarem confortáveis. É uma forma de doar sua intimidade para a sociedade e deixar que ela use ao invés de você. E nem você e nem a sociedade percebem o mal que estão causando uma à outra.
Daí, você tira a máscara e seu rosto verdadeiro é novo até para você… E a sociedade se assusta e você se assusta!
E então, você cogita usar a máscara de novo, pois já está habituada e ninguém vai olhar estranho, mas a máscara não cabe mais… E você fica por um tempo neste limbo onde não é confortável ficar com a máscara e nem sem ela.
Depois, tem o momento em que você passa a: 1) ver que a máscara é uma ferramenta; 2) que você pode escolher usar esta ferramenta de forma negativa ou positiva; 3) que você usa se quiser e de acordo com seus critérios! 4) Que não é um médico ou psicólogo ou outro autista que vai dizer se você deve ou não usar, ou quando. É só você. Sempre foi só você. Estou nessa fase, eu acho.
Não sei se consegui explicar… Deixa-me tentar com exemplos:
Um uso negativo da ferramenta é quando a gente tenta fugir de uma pressão social através da camuflagem. Ou seja, a gente cede a pressão que os outros fazem para que sejamos neurotípicas. Este tipo de camuflagem geralmente pode aparecer em situações aversivas e significa que a gente está experimentando sensações/sentimentos desagradáveis e quer fugir ou se esquivar delas através da camuflagem. Momentaneamente, evitamos ser olhadas, comparadas, “chacoteadas” etc, porém o custo é alto e vem em forma de sentimentos negativos de não-pertencimento, sentir-se vazia, deslocada e invalidada intimamente enquanto pessoa. Estes sentimentos são mais fortes quanto mais consciências temos da camuflagem.
Quando alguém se incomoda com a forma como participo das aulas e busco ser menos participativa e não trazer tantas questões ou informações. Ou quando busco não me aprofundar em um assunto para não “entediar” alguém na mesa.
Exemplo: Digamos que alguém se incomoda com o fato de eu sempre querer ficar em casa e sempre que todos saem e eu fico, eu sou chamada de chata. Daí, para que eu pare de ser chamada assim, eu passo a sair mesmo não gostando. Assim, todos ficam felizes (menos eu, claro) e me falam “Viu, só. Você só precisava tentar de verdade. Agora está você aproveitando a vida.” O som alto, as pessoas falando, a conversa, as luzes… tudo me incomoda e eu sorrio, danço, bebo e conto piadas prontas. E de repente sou “legal”. A festa acaba e eu não me sinto bem por horas… Dor de cabeça, mágoa, culpa, tristeza e arrependimento…
Bem, agora um uso que considero positivo é quando gente está buscando produzir sentimentos e conexões reais através da camuflagem. Sim, isso é possível a meu ver. Camuflagens neste contexto geralmente surgem em contextos não aversivos, ao contrário, surgem em relações de trocas afetivas reais e verdadeiras. E produzem sentimentos muito positivos em mim quando a camuflagem é efetiva.
Quando consigo acolher alguém com um sorriso programado no momento certo. Quando consigo soltar aquela frase pronta no momento que a pessoa mais precisa ouvir exatamente o que falei. Quando sou competente em fazer bem a quem me faz bem dando a ela o que ela neurotipicamente precisa, justamente porque ela me dá o que eu preciso na minha neuroatipicidade (sendo ela consciente ou não disso). Ambas nos esforçando para nos respeitarmos.
Exemplo: Digamos que tenho uma amiga que precisa iniciar uma atividade física e que, por insegurança, teria muito mais facilidade de se engajar em um esporte se ingressasse na primeira aula com alguém tão inexperiente quanto ela. E esta amiga, precisando de apoio, me chamasse para a primeira aula com ela. Seria possível que eu me esforçasse para não ter o meu melhor desempenho nesta primeira aula com ela. Justamente para que isso não prejudicasse as intenções da minha amiga em se engajar em uma atividade física.
O exemplo não importa… O que quero dizer é que tanto no que diz respeito ao TEA, quanto à condição de AH/SD, enxergo a capacidade de mimetizar comportamentos neurotípicos uma habilidade fantástica. O que considero violento é quando nos obrigam (ou nos obrigamos) a fazê-lo para satisfazer o prazer do outro tão somente e não para nosso benefício ou para um bem maior que a gente.
SM: O que é ser uma esposa autista e superdotada?
Oriana: Bem, não sei se é muito diferente de ser qualquer coisa, no fim das contas. Acho que num relacionamento você está sempre buscando se equilibrar, buscando adaptações. Nós estamos nesse processo desde sempre e, enquanto houver interesse de ambas as partes, permaneceremos nesta caminhada. Acho que pra ela pode ser mais difícil ter que pedir para eu parar de falar excessivamente dos meus hiperfocos e de maneira gentil para que eu não me sinta muito mal. Ter que saber que depois de um dia com muita interação social ela vai ficar sozinha por um tempo e entender que não é com ela. Por outro lado, me sinto muito bem em poder contribuir com minhas habilidades em encontrar padrões nas coisas, por exemplo. Em perceber micro mudanças de comportamento nos nossos cachorros e logo a gente descobre que estão doentes antes de piorar. Não acho difícil ser esposa. Obrigada pela pergunta, me fez refletir sobre algo interessante.
SM: Você ou algum membro de sua família faz uso de algum acompanhamento psicológico? Em caso positivo fale como isso funciona para vocês.
Oriana: Sim. Faço terapia desde fim da adolescência. Fiz longas pausas, mas com as crises de ansiedade voltei e não parei mais.
SM: Algum lema motivacional?
Oriana: Não, não.
SM: Você ou algum membro da sua família faz uso de algum acompanhamento psicopedagógico? Em caso positivo, fale como isso funciona para vocês.
Oriana: Não.
SM: Algum recado pra galera?
Oriana: Sim. Um diagnóstico certamente tem seu valor simbólico e social, mas não pode jamais ser uma permissão para sermos quem somos. Nossa individualidade vai muito além do laudo.