
Cícero Moraes por Martin Dlouhý / Koktejl
Como e por quê descobri que sou uma Pessoa com Altas Habilidades/Superdotação (PAH/SD) na adultez
Cícero Moraes
Dr.h.c. FATELL/FUNCAR, OrtogOnLine – Teacher and developer, Arc-Team Brazil – 3D Designer.
www.ciceromoraes.com.br
https://scholar.google.com.br/citations?user=u33uvHUAAAAJ&hl=pt-BR
https://www.researchgate.net/profile/Cicero-Moraes
Não, não foi pelo QI, muito menos pelo status de indivíduo dotado de grande inteligência que entrei no mundo das Pessoas com Altas Habilidades/Superdotação (PAH/SD). Ao longo dos meus quase 40 anos de vida, sempre julguei as minhas habilidades dentro da normalidade e atribuía o sucesso de algumas empreitadas ao esforço e à disciplina pessoal.
Tudo começou efetivamente em novembro de 2021, naquele ano a Pandemia da COVID-19 estava dando sinais de arrefecimento, as fronteiras dos países aos poucos começaram a reabrir, o que muito alegrou a mim e a minha esposa, pois estávamos com as passagens compradas e a República Tcheca nos esperava para comemorarmos romanticamente nossos 12 anos de relacionamento. Além disso, fazia pouco tempo que a edição do Guinness World Records 2022 havia sido lançada e nela constava um trabalho que eu havia participado, uma honra inefável e inesperada. Evoluíram também as tratativas para o um título de Doutor Honoris Causa, que eu receberia no começo do próximo ano, graças às minhas contribuições para a Arqueologia, História, Medicina Humana e Veterinária. Nada mal para um autodidata que fora muito pobre na infância.
Na noite de 8 de novembro de 2021 senti que um forte quadro de ansiedade se aproximava, algo que eu estava relativamente acostumado frente ao histórico que descreverei mais adiante, mas naquele momento não consegui entender o motivo de tal inquietação, afinal, tudo indicava que a minha vida estava plena e realizada. Percebendo o quadro, minha esposa perguntou-me o que se passava, expliquei por alto e disse não entender o que estava acontecendo. Ela então, sabiamente, aventou para a possibilidade de ser algo relacionado ao aniversário, o que eu prontamente discordei, mas não de modo completo, posto que assim que ela dormiu, eu peguei o smartphone e pesquisei o termo “crise dos 39 anos”. Foi uma profusão de artigos e para a minha surpresa descobri que estava passando pela crise da meia-idade ou metanoia, grosso modo, uma espécie de adolescência adulta onde o mundo psicológico sofre profunda turbulência, fazendo com o que o indivíduo reveja seus conceitos e reestruture a forma com que encara a própria existência.
Como era de praxe, busquei conhecimento e entrei de cabeça na leitura de materiais que revelassem o que estava acontecendo comigo. Um livro que me ajudou muito foi A Passagem do Meio: da Miséria do Significado da Meia-idade, de James Hollis. Graças a essa obra tomei os primeiros contatos com Carl G. Jung, e os conceitos formulados por ele sobre tal fase da vida se mostraram bastante compatíveis com o que eu sofria naquela feita.
Havia alguns meses que eu era atendido pelo psicólogo Lucas Caversan, especialista em ansiedade. Vendo a minha inquietação, acompanhando a evolução dela e percebendo uma tendência clara, ele indicou-me outro livro intitulado Pessoas altamente sensíveis: Como lidar com o excesso de estímulos emocionais e usar a sensibilidade a seu favor, de Elaine N. Aron. Assim como a obra anterior, o que li caiu como uma luva, não apenas frente às inquietações da meia-idade, mas também a minha própria sensibilidade ao longo da vida.
Durante muitos anos eu imaginava que fazia parte do espectro autista ou algo parecido, pois desenvolvi comportamentos de aversão a grandes grupos de pessoas e/ou ambientes “poluídos” (déficit de inibição latente), hiperfoco, sensibilidade à luz, aversão a alguns sons (misofonia), conseguia mapear com facilidade o estado de humor de quem estava próximo, a fome me deixava muito irritado, tinha pouca tolerância a injustiça a ponto de estourar, o que me fez imaginar ter transtorno explosivo intermitente (TEI). O meu hiperfoco era tão grande que quando eu me dedicava a uma tarefa, parecia que o mundo girava em torno daquilo e eu não relaxava até terminar o projeto proposto, com muita resiliência e motivação. Por sorte, quando a saturação batia, naturalmente a minha mente se protegia, a ponto de, se um dia eu me dedicava demais até queimar as energias, no outro eu me entregava ao ócio completo e passava horas fazendo “nada”, ou seja, assistindo filmes sem muito sentido, vídeos sobre assuntos leves, arrumando algumas coisas em casa, etc. Isso me permitia recarregar as forças para, posteriormente, continuar “teimando” até a tarefa ser executada ou o objetivo alcançado.
Ao descobrir que eu era uma PAS (pessoal altamente sensível), aprendi algo novo e muito importante: descansar de verdade, ou seja, não fazer nada para realmente recarregar as energias, evitando a saturação e logo, a ansiedade. Além disso passei a consumir muitos materiais (vídeos e textos) sobre o assunto, e entre estes, alguns citavam a questão das altas habilidades e superdotação. Em um primeiro momento eu ignorei tal possibilidade, pois para mim o superdotado era aquele indivíduo com memória totalmente fotográfica, que fazia cálculos complexos de cabeça, sendo praticamente um computador humano imune a erros. No entanto, quanto mais eu escavava por informações, mais evidenciava-se a compatibilidade com aquele espectro. Passei então a assistir vídeos e lives em canais especializados e para a minha total surpresa, a descrição apresentada neles coadunava-se com a minha realidade. De modo a complementar o conhecimento extraído nos vídeos, baixei uma série de artigos sobre o tema no Google Scholar, dentre eles um inicialmente me chamou muito a atenção, a tese de doutorado da Dra. Susana Graciela Pérez Barrera Pérez intitulada Ser ou não ser, eis a questão : o processo de construção da identidade na pessoa com altas habilidades/superdotação adulta. Os conceitos expostos acerca do comportamento de indivíduos com AH/SD foi significativamente compatível com a minha própria história de vida. Para ilustrar melhor, eu tenho memórias de quando era bebê, aos meus poucos meses de vida minha mãe estava jogando canastra com o meu pai e amigos e eu me interessei pelas cartas. Ao tentar pegar uma delas na mesa, o meu curto braço não a alcançou, daí minha mãe me deu uma colher, tomei a colher com a mão esquerda, encostei na carta, puxei-a e finalmente peguei-a. Todos na mesa vibraram com a ação e eu me recordo muito bem daquele momento. Além disso, comecei a andar cedo, a falar cedo, a ler algumas palavras com pouco mais de um ano de idade e a minha memória é ininterrupta desde os 3 anos, de modo eu recordo até do momento que isso passou a acontecer, pois foi no dia que eu dei uma pirueta sobre a cama e de lá pra cá lembro de quase tudo. Apesar desses fatores serem comuns em indivíduos com AH/SD, não foram eles que me causaram mais interesse, uma abordagem notória foi a dos três anéis de Renzulli, conceito que está bem documentado na tese supracitada. Segundo tal abordagem as AH/SD são a intersecção de três características: 1) Capacidade acima da média, 2) Criatividade e 3) Comprometimento com a tarefa. A descrição documental batia com o que eu chamava de “esforço pessoal e disciplina”, pois era justamente o que eu fazia com os meus projetos e um dos que mais tenho carinho, para exemplificar, é a minha revista científica/livro chamada/o OrtogOnLineMag. Pouca gente sabe, mas o projeto nasceu no início da década de 1990, quando assisti a um episódio do desenho dos Muppets Baby, onde a trupe montou um jornalzinho . Fiquei maravilhado com o conceito de trabalho em grupo, como eles juntaram peças (matérias) que ao final se converteu no The Daily Muppet. Décadas se passaram até o ano de 2019, na oportunidade eu estava de saco cheio das licenças de revistas científicas, bem como a morosidade do processo de revisão por pares e decidi lançar minhas próprias publicações para que, ao menos parte dos meus estudos já não se encontrassem defasados quando publicados. A essa altura eu havia me cadastrado para gerar ISBN, código DOI e tinha estudado tecnologias como Latex, CSS para HTML e o maravilhoso SPHINX, uma plataforma escrita em Python que permite publicar um material de modo online e em PDF a partir de um mesmo código. Comecei a escrever junto com os meus sócios os primeiros capítulos e rapidamente meus alunos se juntaram ao grupo, fazendo com que, na prática a experiência do desenho dos Muppets Baby acontecesse, só que, diferente da ficção a OrtogOnLineMag já está no seu quinto volume, tem os artigos anexados ao Google Scholar e conta com publicações muito importantes no campo do planejamento cirúrgico facial, documentação digital de patrimônio, ferramentas de análise estrutural anatômica e outros tantos materiais. Há alguns dias a publicação foi até citada na versão online da revista Galileu, uma das mais importantes sobre ciência no Brasil.
Todo o conhecimento utilizado no caso da revista/livro é fruto de estudos ligados ao autodidatismo. Desde muito jovem eu aprendo o que me interessa por meio de estudos solitários, não digo que aprendo sozinho porque o faço com material de terceiros, sejam artigos, livros, vídeos e outras mídias. Desde o final dos anos 1990 me apeteceu o campo da computação gráfica 3D e desde então não parei de estudá-lo. Inicialmente trabalhando com maquetes eletrônicas, pois portei para o mundo digital o conhecimento analógico que adquiri a partir dos 12 anos, quando eu era um desenhista auxiliar de alguns escritórios de arquitetura. Como eu já ganhava o meu dinheirinho desde aquela época, me pareceu uma boa ideia começar a fazer o trabalho nos computadores, pois poupava um tempo precioso, além de permitir que os dados ficassem armazenados em uma mídia diferente do que apenas o papel. Os estudos evoluíram, conheci o Linux, passei a usar esse sistema operacional, comecei a prestar serviços para a área da publicidade e em 2011 aconteceu algo que mudaria a minha vida para sempre, fui assaltado e reagi a dois ladrões armados, levei um tiro de raspão na cabeça e, mesmo tendo ajudado a salvar a minha família do pior, o ocorrido fez com que um quadro de ansiedade se desenvolvesse a ponto de eu temer sair de casa por 15 dias.
Não foi a primeira vez que eu testemunhara grande violência, quando eu tinha 4 anos, vi meu pai tirando a sua própria vida de modo muito brutal, algo que aguçou a minha sensibilidade posteriormente, posto que, como a minha memória era plena, lembro de todos os detalhes, de tudo o que as pessoas falaram e fizeram naquele momento e esse ponto é outro que me liga às AH/SD. No caso do meu pai eu era muito novo e na época eu não entendia a gravidade da situação, mas no assalto o nível de sofrimento foi muito grande pois, apesar de ter feito os ladrões empregarem fuga, a ansiedade, a culpa e o medo tomaram conta de mim por algum tempo. Como supramencionado, passei 15 dias praticamente trancado em casa, com muita indignação e sem vontade de fazer quase nada. Mas eu sabia que precisava lutar contra aquilo e a forma que busquei resolver a situação diz muito sobre o campo abordado neste material, eu decidi estudar. Como me via desgostoso de quase tudo o que me rodeava, busquei aprender sobre um campo que me havia chamado a atenção, curiosamente também no início da década de 1990, na ocasião eu havia assistido um quadro chamado Isto é Incrível! ou um programa chamado Acredite se Quiser, não me recordo qual dos dois. O fato é que em um deles apresentaram a técnica de reconstrução facial forense, onde a partir de um crânio reconstruíam o que seria a face do indivíduo em vida. Novamente o projeto ficou hibernando por décadas, até que passei a ler sobre o assunto, comprei (e paguei super caro n’) o livro Forensic Art and Illustration, de Katen T. Taylor e a partir dele e outras fontes aprendi a efetuar a técnica. Em pouco tempo superei a ansiedade acerca do assalto e fechei parcerias com pesquisadores internacionais, apresentando o trabalho em vários países. Um dos desdobramentos desse projeto foi o interesse por parte de médicos e cirurgiões dentistas acerca a abordagem 3D digital sobre a face, que se desdobraram em parcerias de desenvolvimento de tecnologia culminando em soluções para o planejamento cirúrgico humano (hoje o meu ganha pão) e a confecção de próteses animais e humanas. Desde o assalto que sofri, a recuperação foi tão plena que além de “voltar à vida”, passei a viajar por outros países, a ter dezenas de parceiros de pesquisas e a ver o meu trabalho noticiado em mais de 100 idiomas em volta do globo, nos principais sites de notícias, jornais impressos e canais de TVs.
Parecia que tudo estava resolvido e encaminhado, mas a metanoia exacerbou algo que me liga também às AH/SD, a sobre-excitabilidade. Ao ler acerca do trabalho de Dabrowski e a Teoria da Desintegração Positiva, uma série de situações ao longo da minha vida passou a fazer muito, muito sentido e foi esse o motivo final que me inspirou a buscar por um “diagnóstico”.
Percebi que eu funciono com parte dos sentidos muito aguçados, de modo que é um grande sofrimento ficar exposto demais a situações que muitas pessoas encaram com normalidade. Por sorte eu consegui me adaptar ao mundo, ajustando a minha realidade ao que eu consigo gerenciar. Desde muito novo passei a trabalhar em casa, sempre que possível evito sair em público, as aulas que ministro presencialmente são feitas para grupos específicos que estão lá porque querem e precisam, então fico muito à vontade para explanar o conteúdo. Apesar de eventualmente almoçar em restaurantes, procuro fazer as refeições em casa ou no escritório, de modo que evito sofrer com a misofonia originada a partir da mastigação alheia ou me irritar com aquela bateção constante de talheres, além das conversas em voz alta. Com a atual tecnologia e as adaptações digitais motivadas pela Pandemia, muitas tarefas outrora presenciais, podem ser executadas de modo online, o que evita a cansativa e burocrática tarefa de ir a locais físicos para gerar documentação. Apesar de tudo não descuido da vida social, todos os dias faço longas caminhadas, vou à academia de musculação e sempre que possível procuro conversar com outras pessoas, afinal, eu não detesto elas, nem a sociedade, nem a infraestrutura, eu só me canso com muita facilidade ao elevado número de estímulos e isso é involuntário.
Mesmo diante de todo esse sofrimento, ao longo de todas essas décadas eu nunca fiz uso de medicamentos. A única vez que tomei meio calmante foi próximo ao ano 2000, quando tive a minha primeira crise de ansiedade ou uma espécie de semi-pânico. O médico entendeu na hora o que se passava, me deu meio comprimido, o qual tomei e dormi como uma criança. A partir daquele episódio procurei superar a situação e o consegui estudando e aprendendo como trabalhar no computador. Foi naquele momento que eu entendi que apreciava ficar sozinho, estudar sozinho, mas igualmente não descuidei da vida social. Se eu soubesse o que era sobre-excitabilidade já naquela época, creio que teria evitado muito sofrimento, mas mesmo na ignorância, dei o meu jeito e é absolutamente impossível eu reclamar da minha trajetória.
Isso explica os motivos reais da minha busca pelo “diagnóstico”, nunca foi sobre status, mas sobre autoconhecimento. A metanoia meio que me obrigou a entender a mim mesmo, sob pena de eu não ter paz até fazê-lo. Era como se eu me desfragmentasse em várias entidades dentro da mente e encontrar o verdadeiro eu se convertesse no objetivo quase único da existência. Desde novembro do ano passado eu simplesmente mergulhei nos estudos sobre psicologia, lendo vários livros e muitos artigos sobre o tema. Todo o estudo foi naturalmente se direcionando para as AH/SD e por algum motivo, apesar de ficar evidente que eu fazia parte daquilo, o acompanhamento profissional me pareceu essencial para chegar a um veredito.
Entrei em contato com a Dra. Daiane Alex Seccon de Azevedo e procedemos com as avaliações. Geralmente ser avaliado me incomoda bastante, mas consegui segurar a onda e seguir com todo o protocolo, até receber o laudo final, indicando efetivamente que eu pertenço ao espectro de PAH/SD. Quando recebi a notícia fiquei bastante emocionado e aliviado, foi como tirar um imenso peso das costas.
O mais agradável de toda essa experiência e conhecimento adquirido é que parece que eu fiz as pazes comigo mesmo, pois passei a me entender melhor, a respeitar os limites, as características, a saber descansar ao passo que ganhei mais coragem para exercer atividades que outrora me cansavam bastante. Ao saber que tenho sobre-excitabilidade meio que espero uma reação mais exacerbada do meu corpo frente a algumas situações e acontecimentos, isso reduz a ansiedade e se algo foge ao controle, consigo lidar melhor com o ocorrido, sem colocar expectativas inalcançáveis oriundas de um comportamento mais ideal do que viável.
Outra coisa positiva foi a compreensão do hábito de estudar e esmiuçar tópicos, até a exaustão. Durante um tempo focar em determinadas linhas de conhecimento me pareceu perda de tempo, mas hoje entendo que isso é algo natural da minha pessoa e, desde que eu alimente a curiosidade com prudência, sem exagerar no tempo de estudo, me alimentando bem, descansando e não me saturando, está tudo bem, pois estudar é mesmo divertido! Não se trata de eu ter resolvido a vida, pois este é um estado distante da realidade, o fato é que agora tenho ferramental para lidar melhor com as situações e isso é o suficiente. Só quem sofreu com o excesso de estímulos de uma mente em ebulição constante sabe do que estou falando.
Para concluir, decidi por livre e espontânea vontade, seguindo minhas características de compartilhamento informativo, escrever este material que creio, ajudará muitas pessoas em condições iguais às minhas. Calculando por alto, trata-se de 6 a 10 milhões de indivíduos apenas no Brasil, muitos deles sem a mínima ideia do motivo das suas inquietações.
Espero que esse material chegue ao máximo possível de pessoas e que elas encontrem a tranquilidade que eu tenho vivido, isso não é ser nem melhor nem pior do que ninguém, mas se conhecer e ter consciência de que a sua vida é digna, respeitando as suas características e festejando o precioso regalo de ser um indivíduo único.
Cícero Moraes
Sinop-MT, 25 de setembro de 2022.