
Daniele Pendeza
Meu nome é Daniele Pendeza, sou gaúcha e no momento da escrita desse texto, tenho 33 anos. Fui identificada como pessoa com Altas Habilidades/Superdotação aos 27 anos, mas essa história começa anos antes.
Minhas lembranças mais antigas me levam aos meus 4 anos, quando eu falava para a minha avó materna que não precisava aprender a fazer as coisas de casa, pois seria doutora e teria uma empregada para fazer tudo para mim (ela sabiamente me disse que eu precisaria aprender, para poder ensinar para a tal empregada como as coisas deveriam ser feitas ou para saber avaliar se o trabalho era adequado). Nessa época já era alfabetizada e realizava leitura fluente, interpretando o significado dos textos. Como eu sempre pedia que histórias fossem lidas antes de eu dormir, e o que era lido para mim nunca era o suficiente, pedi para aprender a ler, então eu poderia ler à vontade aquilo que eu desejava. Minha mãe, mesmo sem ter completado a educação formal, me ensinou o alfabeto e como as sílabas se juntavam, e logo eu estava lendo.
Nesse momento havia acabado de ingressar na Educação Infantil, onde as professoras ensinavam o alfabeto para a turma, e eu acabava por demonstrar péssimo comportamento, bagunçando na sala e brigando com colegas. Como já sabia aqueles conteúdos, terminava as atividades muito rápido e ficava ociosa, sem receber materiais extra para realizar, sem nenhuma adaptação curricular. Houve reunião com a minha mãe, pois desconfiavam que ela me obrigava a estudar em casa, mas todo o processo de alfabetização precoce e a minha curiosidade em aprender coisas novas partiam de mim mesma. Lembro de apenas uma professora que levava atividades extra, alguns desenhos para que eu pintasse e permanecesse ocupada enquanto os colegas terminavam a atividade principal. Mas isso partiu dela, de seu estudo e boa vontade.
Fui oradora na formatura da Educação Infantil e soube que nesse momento houve nova reunião com minha família, sobre a possibilidade de eu ser avançada de série, indo para o segundo ano do fundamental, ao invés de iniciar no primeiro, tendo em vista que eu já havia dominado os conteúdos de forma autodidata. Uma das pessoas que deveriam autorizar esse processo foi contra, alegando que eu não teria maturidade para um segundo ano. Não foi feita nenhuma avaliação ou acompanhamento com profissional especializado (a). A decisão foi tida a partir de achismo e falta de competência de pessoas que deveriam saber sobre inclusão escolar.
Isso ocasionou um início difícil no Ensino Fundamental. Tive dificuldade de me enturmar com os colegas, especialmente com as meninas. Eu fiz amizade com alunos e alunas dos anos mais avançados (2 e 4 anos na minha frente), tendo mais em comum com eles do que com os meus pares. Os problemas emocionais aconteceram mesmo eu tendo que cumprir o currículo usual, pois era exaustivo ir para a escola, havia bullying e muitas brigas, inclusive com agressões físicas, mas eu conseguia me defender e revidava.
Lembro que saí em defesa de uma colega que possuía dificuldade de aprendizagem. Nossas mães se conheciam e eventualmente brincávamos fora da escola, então me aproximei dela também no ambiente escolar. Um dia fui comprar lanche e ela ficou me esperando perto de um viveiro com animais que havia no pátio da escola. Um grupo de outras meninas a estava estrangulando em um canto escondido. Bati em três meninas (não lembro detalhes desse momento) e fui parar na direção para assinar o “caderno” da escola, mesmo eu tendo ido em socorro de quem realmente estava sofrendo, também saí como culpada. Depois de um tempo essa colega saiu da escola e nunca mais tive contato com ela. Esse triste momento é minha lembrança mais antiga de eu lutar por justiça social, de não discriminar alguém pelo simples fato de ser diferente. Conforme fui crescendo, fui ficando “respondona” e “inadequada” nas minhas colocações, enfrentando as pessoas e tendo que lidar com muitas surras e castigos devido ao meu comportamento.
Ainda na escola, comecei a buscar por atividades extra que sanassem minha curiosidade, pois as aulas nunca eram suficientes, tudo parecia fácil demais, superficial demais (e exceto nas aulas de matemática, eu tinha muita facilidade e frequentemente gabaritava todos os trabalhos e provas). Não lembro em qual série exatamente, mas tivemos uma ótima professora de educação física que criou laboratórios de esportes, onde podíamos ter contato mais aprofundado com futebol, handball, vôlei e ginástica olímpica. Fiz todos. Mais ou menos na mesma época tivemos aulas de dança, também me inscrevi (a escola era filantrópica, e por ser de baixa renda eu tinha bolsa, o que me proporcionou ter tantas experiências legais mesmo sem ter poder aquisitivo).
Infelizmente, professores (as) que se destacam crescem e vão para ambientes onde suas habilidades são melhor acolhidas, então perdi a professora de esportes e o professor de dança. Mas sempre surgiam pessoas legais na minha vivência, como a professora de artes, que também criou laboratórios de desenho e pintura, e lá fui eu novamente.
A vida escolar não se resumia apenas à escola, pois eu tinha amigos na rua onde eu morava, primos mais velhos e a tarde toda mais os finais de semana para ir atrás dos meus interesses. Apesar de ter muitos amigos e amigas, eu sempre gostei mais de brincar sozinha e de me perder no mundo da minha imaginação. Queria ser cientista, assistia a programas como X-tudo e imitava experiências em casa (às vezes com a ajuda dos meus pais, outras vezes sozinha e escondida, foi assim que eu fiz uma fogueira gigante que gerou pânico na rua, ou quando eu tentei fazer remédios com plantas e acabei com uma grande dor de barriga). Eu morava em uma casa com pátio e criei uma bancada de cientista para fazer meus experimentos, do lado de fora. Buscava pedrinhas, plantas (algumas eu plantava, cheguei a ter um jardim todo cuidado por mim), insetos e tentava entender mais sobre eles. Eventualmente ganhava dinheiro e comprava revistas e gibis na revistaria perto de casa, escrevia poemas e histórias.
Meu amor pelos livros começou quando eu descobri as bibliotecas de duas tias, que são professoras de letras, e deixaram eu ter livre acesso aos materiais. Todo final de semana eu escolhia algum livro infanto-juvenil e levava para casa. Aos poucos um livro não era mais suficiente e eu levava dois, três…. Até hoje rimos de uma história engraçada: uma de minhas tias me emprestou o Caçador de Pipas, o livro mais extenso que eu havia pego até então. Eu disse que, como o livro era muito grande, eu demoraria para devolver, e ela disse que não tinha problema. Três dias depois eu devolvia o livro e queria debater sobre a história.
Nos dois últimos anos do ensino fundamental (sétima e oitava séries) parti para aulas de violão, canto e uma exploração da biblioteca da escola (a da família já não tinha tantos atrativos). Havia aulas de redação, onde podíamos retirar um livro por mês e devolver junto com uma resenha valendo nota. Eu queria ler Shakespeare (não seria a primeira vez), mas a professora proibiu, pois, segundo ela, era muito avançado para a minha turma. Peguei Hamlet escondido em baixo de algum livro da coleção Vagalume e ao final do mês entreguei as duas resenhas. A professora pediu desculpas e a partir daquele momento deixou eu escolher o que eu queria, inclusive fazendo uma espécie de curadoria para me direcionar a livros que poderiam me interessar.
E os colegas? Nessa época eu era mais “popular”, pois todo mundo queria fazer trabalhos comigo ou colar nas provas. Alguns anos depois, quando eu terminava o ensino médio, uma ex-colega do Fundamental me achou nas redes sociais e pediu desculpas por ter se aproveitado de mim na escola, contou que quando “me perdeu”, não deu mais conta dos conteúdos e começou a repetir de ano, tendo muitas frustrações.
Apesar disso, eu estava cada vez mais focada nas coisas que eu gostava e me importando cada vez menos com quem não me servia (isso não significa que eu não sofria, mas que eu era capaz de ter minhas alegrias). Na oitava série comecei a me afastar ainda mais, pois no turno inverso das aulas eu fazia cursinho para entrar em uma escola técnica de Ensino Médio que funcionava dentro de uma universidade pública, e que possuía processo seletivo. Basicamente, só estudava. Muitas pessoas diziam que eu não passaria na prova, porque “fulano e ciclano fizeram a prova e não conseguiram”. Hoje vejo como esses comentários eram fruto de machismo e apesar das minhas habilidades, sempre tinha alguém disposto a me diminuir, ou dizer que eu não fazia mais que a minha obrigação em ir bem na escola e estudar.
Foram apenas 60 vagas e eu era uma delas! Lá, pude ter acesso a uma biblioteca infinitamente maior (cheguei a ler 75 livros por ano nessa época – eu tinha um caderninho onde anotava tudo o que lia, hoje já abandonei essa prática e não conto mais), ter liberdade de horários (não se rodava por falta, inclusive eu matava aulas que eu ia bem para estudar aquelas que eu tinha dificuldade – e, sim, eu também tinha dificuldades, especialmente nas exatas) e ter contato com colegas tão nerds quanto eu. Não existiam mais brigas e problemas, o ambiente era colaborativo e quase toda a escola se conhecia (eram 6 turmas de ensino médio e mais os cursos técnicos). Para não dizer que tudo foram flores, nesse período eu comecei a ter problemas para dormir. Cheguei a ficar 3 dias acordada, sempre querendo estudar e fazer mais.
No segundo ano havia outra seleção, agora para o curso técnico. Cheguei a me inscrever para a prova de eletrônica, mas durante a prova eu pensei: eu quero estudar música, não gosto de ficar sofrendo com matemática e física! Abandonei a prova antes de terminar de responder todas as questões (se tivesse feito todas, talvez tivesse passado).
Assim, passei a estudar música todos os dias, para prestar o teste de aptidão para o Curso de Música. Meus colegas do Ensino Médio faziam piada, pois eu havia feito a maior média do PEIES (processo seletivo seriado que existia na época) da história do curso de música.
A faculdade foi um momento de emoções mistas, variando entre muitas alegrias e muitas tristezas. Como a média de idade dos alunos e alunas era mais alta, existia uma seriedade maior com os estudos, mas isso não queria dizer que não havia competição, “puxar tapete”, intrigas e muita falsidade (inclusive por parte de professores/as). Eu seguia me refugiando nas bibliotecas (onde consegui um estágio remunerado, meu primeiro emprego) e fiz alguns bons amigos e amigas, com os quais tenho contato até hoje. Foi na faculdade que eu repeti uma cadeira pela primeira vez, e uma segunda e uma terceira. Esses eventos deixaram marcas muito fortes na minha memória. Meu perfeccionismo me fazia perceber que a faculdade havia sido um fracasso, que eu não era capaz e não possuía habilidade suficientes para cursar música. Após a formatura, ao ver meu histórico de notas, vi que havia sido um ótimo curso (considerando as notas e o que aprendi durante essa jornada). As atividades extracurriculares eu fiz mais que o dobro de horas exigidas, sempre enchendo minha agenda com coisas que me dava prazer e não apenas com obrigações. Dentre elas eu participei de corais, fiz recitais e apresentações em hospitais, lares de idosos e casas de acolhimento para crianças com câncer (ideias que eu tinha e organizava com os grupos que eu participava).
Durante o bacharelado comecei a dar aula em escolas de música e tive contato com alguns alunos com deficiência. Resolvi que também cursaria licenciatura em música, pois havia me interessado pelo ensino desse público em especial. Já havia feito várias disciplinas de forma complementar, então faltava pouco para o segundo diploma. Nessa mesma época comecei a ler sobre a música ser utilizada em tratamentos de saúde, como música em medicina e Musicoterapia, então buscava nas bibliotecas e na internet sobre esses assuntos, tentando entender mais e mais.
Ainda durante a segunda faculdade fiz minha primeira especialização, em Psicopedagogia, onde aprendi o que era currículo adaptado e adentrei no mundo da ciência e das publicações científicas. Logo emendei em outra especialização, de ensino estruturado para pessoas autistas. Nesse período passei a dar aulas de música apenas para pessoas com deficiência em uma clínica multidisciplinar. Esse novo espaço me motivou a seguir carreira acadêmica e me abriu portas para uma bolsa de iniciação científica.
Em 2013 houve o incêndio da Boate Kiss, onde perdi pessoas que eu amava. Depois desse episódio eu foquei ainda mais em estudar e trabalhar, como forma para tentar esquecer o que me fazia sofrer e tentar afogar o transtorno de estresse pós-traumático que virou depressão. Nesse período eu comecei a ser paciente de psicoterapia. Ao longo dos anos fui mudando de profissionais de acordo com minhas necessidades, mas nunca mais fiquei muito tempo sem fazer, como forma de me conhecer melhor, de evoluir e de buscar a felicidade.
Quando ingressei no Mestrado em Educação (na linha de pesquisa de Educação Especial), tive a oportunidade de fazer outra especialização, agora em Musicoterapia (o terceiro curso dentro da área da Música), em outra cidade, sendo que eu teria que viajar uma vez por mês, por 300km, para participar das aulas. Não tive escolha, fiz os dois cursos ao mesmo tempo, e além disso trabalhava para poder sustentar as viagens e o curso de Musicoterapia, que era em instituição privada. Foram anos cansativos, mas de intenso aprendizado!
Durante o Mestrado eu tive minha identificação. Uma colega com quem eu trabalhava desconfiou que eu possuía sinais de AH/SD e me convidou para participar de um processo de identificação na universidade. Eu aceitei, mas mais pelo prazer de fazer testes e participar de uma pesquisa. Ao final recebi o parecer, informando que eu apresento o tipo Intelectual e Acadêmico mesclados, envolvendo as áreas naturalista, linguística, musical e intrapessoal.
Após a identificação eu frequentei um grupo de acompanhamento com outra pessoa identificada, mas eu não gostava e não aceitava o resultado que me fora dado. Estava sedimentado em mim o entendimento de que eu não fazia mais que a minha obrigação, de que as outras pessoas que eram burras ou preguiçosas, que era só querer para poder fazer algo bem feito. Eu estava com 27 anos e apenas 5 anos depois, quando havia me mudado para outra cidade, alavancado minha carreira como Musicoterapeuta e estava trabalhando integralmente com pessoas público alvo da Educação Especial (incluindo crianças com AH/SD) que eu resolvi revisitar esse assunto.
Descobri uma psicóloga na internet, que fazia o processo de avaliação e pedi para refazê-lo. Os resultados foram os mesmos, com acréscimo do conhecimento que meu QI era de 126. Esse momento foi muito intenso e trabalhamos as questões que me impediam de aceitar quem eu realmente era, como eu realmente era.
Também busquei avaliação de Terapeuta Ocupacional, pois me via muito nas crianças com quem eu trabalhava, quando o assunto era o sensorial. Para minha surpresa, também recebi o diagnóstico de que tenho Transtorno do Processamento Sensorial, que somado à sobre-excitabilidade das AH/SD vinham me causando muito estresse, desconforto e raiva.

Daniele Pendeza
Atualmente trabalho com o que amo, compreendo melhor quem eu sou de verdade e sigo buscando me aperfeiçoar, sem me comparar ou tentar competir com ninguém. Quero ser melhor por mim mesma, quero buscar o que me completa. Por isso sigo minha carreira acadêmica, agora em busca do título de doutora que eu queria desde os 4 anos, novamente estou reestruturando meu trabalho e organizando outra mudança. O que posso concluir até aqui é que cada fase tem sido melhor que a anterior, que a busca por aprender não tem fim e que eu preciso comemorar cada nova vitória ou objetivo alcançado, pra ser feliz agora.
Acho muito importante as iniciativas de inclusão de pessoas neurodivergentes, tenho uma filha autista que tem apenas 8 anos. Mas acho complicada a ideia de “pessoas superdotadas/pessoas com altas habilidades”, pois essa categoria me parece muito carregada da ideologia colonial.
Afinal, ela carrega consigo, como pressupostos ocultos, a ideia de que o trabalho intelectual é inerentemente superior aos trabalhos manuais, que a inteligência é algo que pode ser medido e que se desenvolve independente de outras dimensões subjetivas como as habilidades emocionais, relacionais, critico-analíticas e criativas. Além de ignorar os contextos históricos, sociais, econômicos e culturais onde essas pessoas tiveram oportunidade de desenvolver tais “altas habilidades”.
Gosto de problematizar o conceito de inteligência, a relação entre inteligência e sensibilidade e acredito que, em uma perspectiva originária, a noção de consciência me parece muito mais importante do que a de inteligência. Planejo ter ainda a oportunidade de escrever sobre isso.
Sobre o conceito de QI e o que ele realmente indica, um tema bastante mal compreendido e deliberadamente distorcido, recomendo um livro excelente, do biólogo evolutivo estadunidense, Stephen Jay Gould, chamado, “A Falsa Medida do Homem”, um verdadeiro tratado em repúdio à utilização da biologia para justificar qualquer forma de preconceito, incluindo aqueles em razão de raças ou gêneros.