
Iana Lima
Supereficiente Mental: Ninguém nasce com consciência de sua própria superdotação, contextualize para nós a descoberta da sua.
Iana Lima: Eu comecei a querer investigar a superdotação quando, estudando sobre autismo, passei a me deparar com conteúdos também relacionados a isso, e fui me identificando. Aquela velha história: eu sabia que tinha mais facilidade que a média das pessoas no aprendizado e na execução de determinadas coisas, mas pensava que superdotado era quem estava na NASA construindo foguete, e esse título jamais se aplicaria a mim. Por isso também que eu quis começar a falar sobre superdotação em adição ao conteúdo que eu já vinha produzindo sobre autismo: para tirá-la de um pedestal, mostrar que ela pode fazer parte do nosso dia a dia, em diversas pessoas, sem sequer percebermos, e que não se trata apenas de ser inteligente, mas há toda uma consequência sensorial e emocional decorrente disso.
SM: Quais são suas áreas de alta habilidade?
Iana: Meu teste foi o WAIS-III e no meu laudo emitido pela neuropsicóloga consta que sou superdotada na área linguística. Não fiz ainda uma avaliação focada nas múltiplas inteligências, tenho apenas alguma noção das que tenho em maior ou menor intensidade, mas não posso afirmar nada quanto a elas até o momento.
SM: Como foi a sua avaliação formal de superdotação ou altas habilidades? Você considera que esse serviço profissional ainda é pouco acessível a boa parte da população brasileira?
Iana: Fui a uma neuropsicóloga porque precisava do laudo de TEA, já que a minha psiquiatra – que foi quem sugeriu que eu era autista – não aplicava o formulário diagnóstico e eu queria um laudo oficial, pois acho importante ter documentação comprovando a minha neurodivergência, já que tenho direitos legais como tal. Conversando com a neuro, falei sobre querer investigar também SD/AH, já que tinha me identificado com algumas características, então ela aplicou o WAIS-III e tivemos a confirmação. Quanto à acessibilidade do serviço, infelizmente ele ainda é muito exclusivo. Uma avaliação neuropsicológica não custa menos de mil reais (e me referindo às mais baratas, pois há lugares em que o preço varia a partir de dois ou três mil), o que é completamente fora da realidade da grande maioria das famílias brasileiras. Por outro lado, entendo que o neuropsicólogo tem um trabalho gigantesco ao fazer uma avaliação. No meu caso, foram aproximadamente dez encontros (alguns duraram mais de 1h), e o meu laudo tem 15 páginas repletas de tabelas, gráficos, pontuações de atividades ou questionários e um parecer da neuropsicóloga sobre o meu caso. A avaliação neuropsicológica se situa no mesmo limbo que a psicoterapia, a meu ver: é um serviço extremamente importante e trabalhoso, cujos profissionais têm todo o direito a uma justa remuneração, no entanto vivemos em uma desigualdade econômica que leva pessoas a se enfileirarem para receber doação de ossos para terem de que se alimentar – e não seriam essas mesmas pessoas provavelmente as mais necessitadas de acompanhamento psicológico?
SM: Como foi a sua aceleração escolar?
Iana: Eu não tenho uma memória clara de como foi porque eu era muito nova. Só sei o que a minha mãe me contou, que a professora pediu uma reunião com os meus pais para dizer que eu estava muito desmotivada nas aulas por já saber o que eles estavam ensinando, e lembro vagamente de ter mudado de turma no meio do ano… Lembro também que eu fazia atividade de casa “por diversão” e a professora reclamava que não era pra fazer sem ela pedir, porque quando chegasse a hora de fazer em sala, eu não teria o que fazer. Deve ter sido nessa mesma época, haha.
SM: Do que se trata as suas teses de mestrado e doutorado?
Iana: A minha dissertação de mestrado analisa a constituição da persona poética de um satirista romano do século II d.C., Juvenal. Segundo o conceito de ethos da Análise do Discurso de Dominique Maingueneau, eu descrevi as principais características do “eu lírico” das sátiras juvenalianas. Já na tese de doutorado, ainda em andamento, pretendo defender que o vitupério (falar mal das pessoas) realizado nos gêneros de sátira e epigrama da poesia romana de II a.C. a II d.C. têm base na invectiva (sinônimo de vitupério) presente no iambo grego, um gênero poético da Grécia Arcaica, e para isso usarei poemas dos satiristas Lucílio, Horácio, Pérsio e Juvenal, e dos epigramatistas Catulo e Marcial (mas vamos ver se esse corpus de análise se mantém ou se serei forçada pelo prazo a diminuir).
SM: Como você relaciona a dupla neurodivergência e a síndrome do impostor?
Iana: Ser duplamente neurodivergente é muito complexo, porque há aspectos da SD/AH que “abafam” características autistas e vice-versa, logo há momentos em que me pergunto se sou mesmo capacitada para me pronunciar em nome de autistas ou em nome de outros SD/AH, porque é como se eu não estivesse inteiramente em nenhum dos lados. A síndrome do impostor entra nessa interação: ter ciência da minha superdotação me assegura de que sou cognitivamente competente para diversas atividades, mas a minha dificuldade de socialização/funcionamento executivo advinda do autismo me faz duvidar. Então vivo sempre um embate interno, por me considerar ao mesmo tempo capaz e incapaz de diversas funções cotidianas ou comuns à idade adulta, e estou sempre à mercê dos feedbacks que recebo, porque como eu sei a minha dificuldade para realizar X ou Y, quando eu consigo, fico pensando que poderia ter sido melhor, o que me leva a nunca estar satisfeita ou plenamente confiante.
SM: Quais são os seus livros, filmes e músicas favoritos?
Iana: Como é impossível escolher só um e não quero extrapolar nas recomendações, decidi trazer três de cada. Sobre livros, posso citar “As vantagens de ser invisível” (1999), de Stephen Chbosky; “A morte de Ivan Ilitch” (1886), de Leon Tolstói, e “A desumanização” (2013), de Valter Hugo Mãe. Como filmes preferidos, cito “Senhor Ninguém” (2012), de Jaco Von Dormael; “O Raio Verde” (1986), de Éric Rohmer; e “Mulher Oceano” (2020), de Djin Sganzerla. Quanto às músicas, e acho que esta é a categoria mais difícil, vou enaltecer vozes femininas contemporâneas e elencar os discos: “Petals for Armor” (2020), da Hayley Williams; “Stuffed and Ready” (2019), da banda Cherry Glazerr; Stranger in the Alps (2017), da Phoebe Bridgers. Para estudar, gosto muito de ouvir “O Lago dos Cisnes” (1877), do Tchaikovsky.
SM: Não raro crises existenciais fazem parte da rotina superdotada ou neurodivergente desde a infância, como você encaixa esse intenso transbordamento no quebra-cabeça da sua vida?
Iana: Ele já me influenciou positiva e negativamente. Em períodos em que passo por intensas dificuldades, é excessivamente fácil me perguntar por que eu continuo aqui se eu posso simplesmente acabar com isso, já que nada significa nada no fim das contas. Por outro lado, e é nesse estado em que eu tenho me encontrado agora – finalmente! –, penso que se nada faz sentido, nada vale meu estresse e a minha preocupação tanto assim, já que estou a apenas algumas gerações de não ser nem sequer uma memória para os que ficam depois que eu me for. No dia a dia, de modo geral, a crise existencial me proporciona muitos devaneios: adoro vídeos e documentários sobre a natureza selvagem e acho fascinante pensar como deve ser a vida de um passarinho, ou de uma cobra, a partir da perspectiva deles; semelhantemente, em qualquer lugar repleto de pessoas, penso que cada uma delas tem uma vida tão complexa quanto a minha própria, e também elas consideram as próprias questões mais importantes que as alheias, como também eu considero as minhas; olho para objetos e vou pensando no material de que ele é feito, como aquele material foi moldado naquele objeto, quem fez aquele trabalho, quem extraiu aquela matéria-prima, de quem foi a ideia de transformar aquela matéria naquele objeto pela primeira vez, e por aí vai. É como se eu constantemente pensasse na profundeza de tudo.
SM: Você ou algum membro de sua família faz uso de algum acompanhamento psicológico? Em caso positivo fale como isso funciona para vocês.
Iana: No momento, eu tenho feito psicoterapia com uma psicóloga que é SD/AH e se especializou em atendimento de SD/AH. Tenho gostado muito de ser acompanhada a partir da minha neurodivergência, que, como comentei no meu relato, era a peça que faltava que fazia com que eu sentisse que algo estava faltando das outras vezes em que fiz psicoterapia.
SM: Algum lema motivacional?
Iana: Não é bem um lema, mas um pensamento a que sempre recorro quando estou em dúvida diante de fazer ou não alguma coisa é: “qual é o pior que pode acontecer?”, porque essa resposta geralmente abre espaço para a solução. Se, no pior dos cenários, acontece X e eu desde já percebo que posso fazer Y para lidar com esse resultado, então eu vou em frente independentemente do que a minha cabeça ansiosa e hipervigilante esteja querendo me dizer – porque ela geralmente quer me fazer desistir de tudo que não seja ficar sozinha dentro da minha casa.
SM: Você ou algum membro da sua família faz uso de algum acompanhamento psicopedagógico? Em caso positivo, fale como isso funciona para vocês.
Iana: Nesta reta final do Doutorado, tenho recebido acompanhamento para conseguir escrever a tese no curto tempo de que ainda disponho e para me organizar quanto a metas e prazos que façam isso ser possível. Esta foi a minha primeira experiência do tipo, e tem sido excelente.
SM: Algum recado pra galera?
Iana: Obrigada aos que me mandaram mensagens positivas após a leitura do meu relato, e obrigada a quem tiver lido até aqui! Fico feliz de finalmente pertencer de verdade a algum lugar e de encontrar tantas pessoas parecidas comigo ao longo deste caminho.