Descaso: Diferenciação Precoce & Reconhecimento Tardio

Ilustração de uma pessoa jovem adulta, de pernas cruzar, sentada no chão, rodeada por peças irregulares de quebra-cabeça que se encaixam deixando vãos entre umas e outras. A pessoa veste uma calça e uma camisa de manga longa, ambas em cinza escuro e azulado. Outras peças de quebra-cabeça caem pelo torso e pelo plano de fundo. A ilustração possui um tonalidade bege, amarronzada e acinzentada.

Transtorno do Espectro Autista (TEA) nível 1 de suporte

Este ensaio eu vou começar de uma forma diferente da de costume.

Antes de definir o que eu estou entendendo e buscando propor enquanto diferenciação precoce e reconhecimento tardio, eu irei explicar porque a imagem acima intitulada “Transtorno do Espectro Autista (TEA) nível 1 de suporte” foi escolhida para ser a capa deste ensaio.

A referida imagem muito me agrada, pois apresenta uma pessoa com o olhar cabisbaixo, o qual é uma ótima forma de representar o olhar distante e compenetrado, sonhador e interiorizado que eu costumo ter no meu dia a dia e mesmo em apresentações ou conversas, onde eu abstraio boa parte do ambiente e da audiência e foco majoritariamente nas minhas próprias ideias, palavras, falas e performances.

A referida imagem muito me agrada, pois apresenta um monte de peças irregulares de quebra-cabeça se acumulando ao redor do personagem, caindo das paredes, se desprendendo da sua roupa, corpo e rosto. Aqui tenho dois motivos. O primeiro diz respeito a como o símbolo “capacitista” do autismo foi ressignificado para elementos mais complexos, seja pelas tonalidades sóbrias em bege, marrom e cinza azulado, seja pelo formato “poroso” das peças irregulares, as quais não necessariamente se encaixam sem deixar vãos entre si e parecem se ocupar mais de representar a nossa natureza especializada, a partir da qual delineamos roteiros de sobrevivência e de tolerância a estímulos intensamente aversivos. O segundo motivo diz respeito a como recortamos a realidade por meio de contornos categóricos, para torná-la mais administrável e que mesmo juntando todas essas figuras encaixáveis, abstratas e colecionáveis, ainda nos deparamos com inconsistências e vazios não categorizáveis, nossa natureza administrativa tenta dar conta dos fenômenos ao nosso redor, mas sempre haverá mais complexidade tanto interna quanto externa do que se consegue contornar, circunscrever e gerir.

A referida imagem muito me agrada, pois representa ume jovem adulte cabisbaixe, administrando a (o) sua (seu) própria (o) (quebra-)cabeça, sua visão fraturada e organizacional do mundo incomensurável e desconhecido. As peças irregulares demarcam até onde conseguimos organizar a nossa própria vida sem o auxílio de pessoas da nossa rede de apoio a nos ofertar o suporte do qual necessitamos. Nós podemos organizar, aprender e construir padrões e estruturas formais como ninguém, eis os nossos talentos autísticos, mas mal conseguimos viver fora do nosso mundo interior sem asfixiar aos poucos e aos muitos precisar de apoio urgentemente, de alívio antes que a tensão evolua para sobrecarga e esta evolua para crise.

CIPTEA de Filipe Russo

CIPTEA de Filipe Russo

Agora, vamos falar de diferenciação precoce e reconhecimento tardio.

Aos 7, 8 anos de idade eu me auto-identifiquei retardado mental por ser a única categoria de neurodivergência que eu conhecia à época e nem sequer nestes segundos termos de entendimento eu organizava minha vida psíquica, mas o fato é que eu me sentia profundamente diferente das outras crianças e hoje em dia me sinto ainda mais das outras pessoas adultas. Ainda, uma amiga de minha mãe ao ver meu comportamento altamente fantasioso, imaginativo e solitário durante uma festa de aniversário até mesmo levantou uma breve hipótese de eu ser autista, daí minha mãe me parou e perguntou se eu estava falando com alguém ao andar em círculos balbuciando frases soltas, ao que respondi que eu estava falando sozinho, que eu criava mundos inteiros na minha imaginação vívida e interagia lá dentro, algo que faço até os dias de hoje, seja fantasiando futuros possíveis, seja imaginando obras de arte e artigos científicos ou simplesmente as tantas formas como algo pode dar errado. Daí, eu batalhei horrores para conseguir minha identificação de altas habilidades ou superdotação (AHSD) aos 16 anos de idade, depois de ter atravessado o inferno da cultura manicomial brasileira e paulista. Eis minha diferenciação precoce.

Só aos 32 anos de idade, novamente por iniciativa própria que passei pela minha primeira avaliação neuropsicológica, a qual incluiu o famigerado teste de QI, o qual realizei pela segunda vez, a primeira havia sido pela Mensa alguns anos atrás, apesar de serem modalidades diferentes da mesma dita mensuração. Após o recebimento do laudo psicológico atestando que eu tenho transtorno do espectro autista (TEA) nível 1 de suporte, eu ainda precisava de um laudo médico, psiquiátrico ou neurológico para poder acessar as políticas públicas destinadas à minha subpopulação. O primeiro psiquiatria que eu fui quis invalidar meu laudo neuropsicológico nos primeiros 15 minutos de consulta, alegando um suposto TDAH e ainda praticando extensa violência terapêutica, algo pelo qual eu já tinha avisado que havia sofrido muito na adolescência e que era justamente o motivo pelo qual eu não fazia mais acompanhamento psiquiátrico há mais de década. Isso me feriu bastante. Demorei meses para conseguir ir em outra consulta psiquiátrica e eu ainda precisava do laudo médico. Esse mês consegui reunir forças e fui numa psiquiatria até então desconhecida, sem recomendações de ninguém, as recomendações anteriores sempre me vieram com alguma forma de ônus. Ela não só reconheceu meu autismo num misto de avaliação clínica e avaliação documental, como levou a sério minha dor crônica de mais de 20 anos enquanto fenômeno reumatológico e comórbido ao TEA. Assim começa minha busca por melhores condições de saúde física, mental, emocional e sensorial, aos 33 anos de idade, depois de mais de década advogando pelos direitos das pessoas com AHSD. Todos esses anos sem suporte para uma, nem para outra condição, atravessei infância e adolescência, escola e universidade sem o devido apoio, assim como inúmeras tentativas de suicídio. Eis o meu reconhecimento tardio.

Filipe Russo por @naraosga

Filipe Russo por @naraosga

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About Filipe Albuquerque Ito Russo

Filipe Russo é indígena agênere de Manaós, vivendo atualmente em Piratininga, autore dos romances premiados Caro Jovem Adulto (2022; 2012) e Asfixia (2014), assim como vencedore do concurso artístico O Olhar em Tempos de Quarentena (2020) e de prêmios de excelência acadêmica em Inteligência Artificial, Psicologia, Gamificação, Empatia e Computação Afetiva (2021). Revisore no periódico científico Revista Neurodiversidade. Especialista em computação aplicada à educação pelo ICMC-USP (2022), licenciade em matemática pelo IME-USP (2020). Fundadore e editore do website SupereficienteMental.com (2013-), blog com mais de 200 publicações, dentre relatos pessoais, ensaios e entrevistas, sobre neurodiversidade e superdotação ou altas habilidades. Pesquisadore em diversos grupos de pesquisa ao longo dos anos, atualmente atua no Círculo Vigotskiano, no Corpo de Ações Transformadoras: Abordando Realidades Sociais pela Educação (CATARSE) associado à UnDF e no TransObjeto à PUC-SP. Coautore nas antologias poéticas "43 Poetas Neurodivergentes", "ECO(AR): Poemas pela Sustentabilidade", "Instagramável: poesia visual, concreta e instapoema", "Poesia Política: vote", "Outros 500: Não queremos mais o quinhentismo", "poETes: Altas Habilidades com Poesia", "1001 Poetas", "Fotoescritos do Confinamento" e recebeu menção honrosa pelo ensaio Desígnio de um corpo, na 4ª edição do projeto Tem Livro Bolando na Mesa. Filipe possui aperfeiçoamento em Altas Habilidades ou Superdotação: Identificação e Atendimento Educacional Especializado pela UFPel e em Serviço de Atendimento Educacional Especializado pela UFSM (2022).
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