Relato Pessoal: Eduardo Padilha Antonio

Eduardo Padilha Antonio

Eduardo Padilha Antonio, 19 anos

“Enquanto todos têm heróis e carros na capa do caderno, Eduardo tem uma célula”. Foi o que eu ouvi de alguns colegas por um bom tempo do meu Ensino Fundamental. Não me lembro de ter ficado particularmente chateado ou de o tom adotado para os comentários ter sido propositalmente ácido, mas essa situação é representativa de muitas outras que se repetiram durante toda a minha vida.
Aprendi a tocar piano sozinho por volta dos 6 anos de idade. Encontrei alguns métodos de iniciação musical que minha mãe tinha guardados e comecei a estudá-los, eventualmente tirando dúvidas com ela. Desde então mantive relação próxima com a Música e com outra grande paixão: a Ciência. Tão próxima era essa relação que antes de ingressar no Ensino Médio já estava acostumado a ouvir a pergunta “de onde veio seu interesse por ciência?” à qual respondia: “não sei, sempre gostei”.
Durante o ensino fundamental eu praticamente perseguia minha professora de Ciências até que consegui acesso ao pequeno laboratório do colégio em períodos extra-classe para organizá-lo e preparar os experimentos a serem realizados posteriormente com a turma. Posso dizer que foi uma ‘experiência cristalizadora’ no que diz respeito ao meu interesse pelas ciências e que o estímulo que recebi de minha professora foi decisivo para o meu sonho de me tornar pesquisador. Já no 7º ano, comecei a frequentar os laboratórios do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP) perto do meu colégio, nos intervalos de minhas aulas de violino e teoria musical na Academia Adventista de Arte, dentro do campus. Até o momento, me sentia muito sozinho pois, apesar de manter boas relações com os colegas em geral, não tinha ninguém com quem conversar sobre a descoberta do DNA ou propriedades antibióticas de plantas medicinais, por exemplo. Mas agora eu podia acompanhar aulas de Anatomia, Zoologia e Microbiologia, e participava ativamente em monitorias de laboratório auxiliando alunos de graduação a estudar para as provas práticas.

Eduardo Padilha Antonio

No laboratório de Anatomia, por volta dos 11 anos.

No 9º ano alimentava o sonho de conhecer um laboratório de pesquisa (até o momento só tinha vivido em laboratórios didáticos) e resolvi escrever uma carta para alguns pesquisadores e professores da Universidade de São Paulo (USP). Para minha surpresa, uma das respostas que recebi veio da geneticista Mayana Zatz, uma das pesquisadoras mais influentes do Brasil, que me colocou em contato com um colega seu do Instituto de Ciências Biomédicas também da USP, o Prof. Dr. Carlos Menck. Foi assim que, aos 13 anos, num feriado de Tiradentes, entrei pela primeira vez no Laboratório de Reparo de DNA, ao qual iria ainda muitas e muitas vezes. Lá tive a oportunidade de trabalhar com uma doença rara chamada Xeroderma pigmentosum (XP) e com câncer de colo de útero. Convenci meus orientadores a submeter o projeto que ali desenvolvi para a Mostra Paulista de Ciências e Engenharia (MOP) e a Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (FEBRACE). Em meio a várias inseguranças, correria com deadlines e posters caros para imprimir, uma sequência de inesperados aconteceu: fui contemplado com o 1º Lugar em Ciências Biológicas na MOP, selecionado para ir automaticamente para a FEBRACE (a lista de finalistas ainda não havia sido divulgada) e ganhei uma bolsa de Iniciação Científica Júnior do CNPq para continuar desenvolvendo meu projeto na USP enquanto aluno de Ensino Médio (sim, isso existe!). O mais inusitado é que não parou por aí: também fui agraciado com o 1º Lugar na FEBRACE e escolhido para compor a delegação que iria representar o Brasil na Intel International Science and Engineering Fair (Intel ISEF), a maior feira de ciências do mundo!
Todas as experiências que descrevi até aqui se deram em meio a uma série de características pessoais que identifiquei ao longo do tempo e considero difíceis de explicar. Por exemplo, sinto uma paixão quase compulsiva pelas áreas de meu interesse (Genética Molecular, Oncologia e Ciências Forenses, entre outras), tenho dificuldade em me adequar ao modelo de ensino vigente – em especial no que tange às aulas expositivas, que considero extremamente maçantes – e tenho preferência por aprender tudo o que puder de forma autodidata. Outra característica é a constante necessidade que sempre senti de estar, por assim dizer, em ‘movimento’. A sensação de que se não estiver envolvido com uma variedade de projetos e atividades intelectualmente estimulantes estarei…morto.
Muitos desses projetos são, por assim dizer, incomuns e me renderam um sem-número de experiências que me ensinaram, entre outras coisas, que: um microscópio não é o presente de aniversário mais desejado por crianças ‘normais’; que colecionar espécimes conservados em vidros com formol pode causar repulsa em seus colegas; que tentar reviver os primórdios da genética cultivando drosophilas (mosca-da-fruta) na cozinha de casa pode deixar sua mãe no mínimo incomodada; que desenterrar sua coelha de estimação morta para recuperar seus ossos e articular o esqueleto pode te render o apelido de ‘coveiro’ na faculdade e que ver o sangue circulando pelas veias da cauda de um girino foi provavelmente a experiência mais linda da minha infância.

Fotos tiradas com meu primeiro microscópio de brinquedo evidenciando estágios de desenvolvimento dos ovinhos dos meus peixes Betta de estimação :)

Fotos tiradas com meu primeiro microscópio de brinquedo evidenciando estágios de desenvolvimento dos ovinhos dos meus peixes Betta de estimação 🙂

Talvez por isso tenha me identificado tanto com a antropóloga Dana Kollmann, autora de ‘Nunca Coloque a Mão de um Cadáver na Boca’, que parava na beira da estrada para recolher animais mortos e depois enterrá-los no quintal e que dormiu por quase um ano com ossos debaixo do colchão até que seu pai fosse investigar de onde vinha aquele cheiro estranho. Nem preciso dizer que se trata de um dos meus livros preferidos e que me fez sentir que eu não era a única pessoa estranha o suficiente para colecionar esqueletos ou ir à aula no ensino fundamental com um livro de Anatomia debaixo do braço.
Foi só aos 18 anos que descobri o termo Altas Habilidades e passei a ler sobre o assunto. Senti uma grande identificação com as características elencadas nas fontes que consultei e aos 19 anos busquei uma avaliação. Não nego que enfrentei um dilema ao tentar entender o que de fato implicaria ser portador de AH pois, assim como o filósofo Michel Foucault, acredito que ‘definir é limitar’. Mas como me disse a psicóloga Christina Cupertino: “É importante dar nome aos bois”.
É evidente que o “avaliar” e “classificar” é repleto de vieses e contradições, que a experiência humana é muito mais do que qualquer rótulo ou teste jamais será capaz de apontar mas, ainda assim, saber que existe um nome para tudo o que sempre senti e que não estou sozinho nessa condição representa o fim da tentativa exaustiva de modular meu comportamento e modo de agir em termos de “certo e errado”. É aceitar que o diferente não é melhor nem pior, mas simplesmente diferente. É não mais me sentir desconfortável por ter uma célula na capa do caderno. No fim das contas, tudo se resume a uma busca por respostas e uma tentativa de entender a si mesmo enquanto sujeito individual e social, dotado de peculiaridades e necessidades particulares mas ao mesmo tempo inserido num contexto repleto de exigências externas.

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Sobre Filipe Russo

Filipe Russo é indígena agênere da Associação Multiétnica Wyka Kwara, autore dos romances premiados Caro Jovem Adulto (2012; 2022) e Asfixia (2014), assim como vencedore do concurso artístico O Olhar em Tempos de Quarentena (2020) e de prêmios de excelência acadêmica em Inteligência Artificial, Psicologia, Gamificação, Empatia e Computação Afetiva (2021). Especialista em computação aplicada à educação pelo ICMC-USP (2022), licenciade em matemática pelo IME-USP (2020). Fundadore e editore do website SupereficienteMental.com (2013-), blog com mais de 180 publicações, dentre relatos pessoais, ensaios e entrevistas, sobre neurodiversidade e superdotação ou altas habilidades. Pesquisadore no grupo de estudos TransObjeto associado à PUC-SP e no grupo de pesquisa MatematiQueer associada à UFRJ. Coautore nas antologias poéticas Poesia Política: vote, Outros 500: Não queremos mais o quinhentismo, poETes: altas habilidades com poesia, Fotoescritos do Confinamento e recebeu menção honrosa pelo ensaio Desígnio de um corpo, na 4º edição do projeto Tem Livro Bolando na Mesa. Filipe possui aperfeiçoamento em Altas Habilidades ou Superdotação: Identificação e Atendimento Educacional Especializado pela UFPel e em Serviço de Atendimento Educacional Especializado pela UFSM (2022).
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