Relato Pessoal: Marcos

Marcos

Marcos preferiu não se identificar com nome completo nem foto de rosto por razões pessoais

Antes de iniciar meu relato, preciso destacar que não sou formado, não obtive em minha vida sucesso com a vida acadêmica, até agora. Não pude comprovar meu nível intelectual de nenhuma forma, nunca fui declarado superdotado por ninguém. Me autodeclarei superdotado apenas pautado nas experiências que vivi e que aqui passo a relatar em parte.

Aos 5 anos eu já lia e escrevia. Roubava gibis do quarto de meu irmão mais velho para ler. Na escola, minha professora me pedia para ficar em silêncio enquanto os demais alunos faziam a leitura dos textos na lousa junto com ela, porque eu lia muito rápido. E quando eu terminava os deveres de sala, ia de mesa em mesa auxiliando aos demais.

No antigo ginásio, sempre foi assim: montávamos grupos para os trabalhos, nos reuníamos na casa de alguém para realizá-los, mas eu sempre fazia tudo sozinho.

Desde que me conheço por gente, quando alguém me traz algum problema pessoal, tomo-o por meu e tento resolvê-lo, não necessariamente por compaixão, mas por vontade de dar soluções. Sempre fui obcecado por resolver problemas.

Quando eu tinha entre doze e treze anos, não me lembro como, mas tomei conhecimento da máxima de platão “Não existe verdade absoluta”. De imediato passei a refletir sobre isso e tentar aplicar. Eu dizia uma verdade considerada indubitável e depois a desconstruía segundo o princípio de Platão. Me animei com essa atividade mental e comecei a discutir isso com alguns colegas. Foi aí que alguém me desafiou a aplicar isso sobre os conceitos da Bíblia, tomando por princípio que não se pode duvidar de nenhum de seus textos. Discordei e comecei a pensar sobre os milagres de Jesus bem como os demais eventos bíblicos como alegorias. Acabei duvidando da Bíblia. Comecei a pensar sobre a existência de Deus, e quase não recebi a primeira comunhão por discutir minhas dúvidas com um padre, a contragosto de minha mãe, extremamente católica, que me obrigou a retratar minha primeira confissão.

Nesta época, aos 13 anos, meu pai morreu, comecei a ser muito mais isolado e me afundei nos meus próprios pensamentos, cada vez mais longe dos interesses dos demais.

Como desde criança sempre fui fascinado por leitura, com quatorze ou quinze anos minha mãe me deu de presente a assinatura de três revistas, uma delas científica. Eu lia todas, mas gostava muito mais da revista científica. Cursava inglês através de três velhos livros que meu pai tinha comprado há anos, e que salvei de irem parar no lixo, assim como muitos outros livros antigos que levei pro meu quarto.

Sempre li muito, tirando ótimas notas em português e literatura. Assim, aos dezoito anos entrei na faculdade no curso de letras, mas nessa época minha mãe precisou ficar com minha vó doente em outro estado, durante mais de um ano. Como a faculdade ficava há 100km de minha casa, em outra cidade, o que demandava três horas de viagem diária, não foi difícil eu acabar perdendo o interesse e após dois anos de curso, desisti. Depois de algum tempo tive um filho e formei minha família. Me dediquei a construir minha casa e passei a não mais me importar com faculdade. Mas, ainda assim, sentia muita frustração. Sempre gostei de conversar com alguns amigos sobre assuntos que envolviam filosofia. Comecei a compor algumas músicas, algumas até gravei.
Até então, morava no estado de Mato Grosso do Sul, onde não havia muitas oportunidades de carreira. Perdi meu trabalho, não havia terminado minha casa, tudo ficou difícil. Decidi vir pro estado de São Paulo e ingressei em um cargo público estadual. Dentro deste novo cargo, ganhando razoavelmente bem, até me acomodei, mas logo comecei a sentir muita frustração pois não me senti realizado.

Já passei por alguns psicólogos pra tentar descobrir o que havia de errado comigo. Sentimento de insatisfação com a vida, apesar de amar muito a minha família. Com o tempo, via que psicólogos não ajudavam, pois me diziam coisas que eu já sabia, decidi ser psicólogo de mim mesmo e iniciei uma introspecção.

Visando aprovação em concursos internos, comecei a estudar matemática e passei a gostar muito, especificamente de geometria, por isso ingressei em uma faculdade relacionada a matemática. Estou no segundo ano de engenharia, ainda pretendo no futuro fazer uma faculdade voltada à física ou astronomia.

Tenho receio de ficar me “anunciando” como superdotado, então trago isso apenas comigo, apesar de meus colegas sempre elogiarem minha inteligência, até mesmo se referindo a mim como tal. Na realidade, não sei com exatidão como atestar isso e, diferentemente de alguns dos relatos que li aqui neste site, nunca fui reconhecido como superdotado na minha infância. Obviamente não posso dizer que sou igual aos outros.

Hoje eu procuro me acostumar à vida que eu conquistei mas busco crescer intelectualmente, através da faculdade que passei a vida deixando de lado e hoje decidi tomar a sério. Tenho um filho de 12 anos o qual tem um elevado grau de inteligência, que procuro incentivar sempre, lhe dando livros e uma boa escola, além de muito conversar sobre suas aspirações e sobre o que ele se interessa a aprender. Ele já fala espanhol e inglês elementares, está aprendendo francês. Autodidata, como eu. Seu QI, segundo um teste aplicado por um profissional, é de 120. Uma inteligência acima do normal que eu cultivo com todo o cuidado, como se fosse uma flor no meio do deserto. Nossas conversas sobre o futuro que ele pode construir para si mesmo sempre lhe enche de estímulo e me inspira a continuar a estudar, para ser exemplo para ele e para, quem sabe, eu possa vir a ser alguém respeitável na área científica algum dia.

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Sobre Filipe Russo

Filipe Russo é indígena agênere da Associação Multiétnica Wyka Kwara, autore dos romances premiados Caro Jovem Adulto (2012; 2022) e Asfixia (2014), assim como vencedore do concurso artístico O Olhar em Tempos de Quarentena (2020) e de prêmios de excelência acadêmica em Inteligência Artificial, Psicologia, Gamificação, Empatia e Computação Afetiva (2021). Especialista em computação aplicada à educação pelo ICMC-USP (2022), licenciade em matemática pelo IME-USP (2020). Fundadore e editore do website SupereficienteMental.com (2013-), blog com mais de 180 publicações, dentre relatos pessoais, ensaios e entrevistas, sobre neurodiversidade e superdotação ou altas habilidades. Pesquisadore no grupo de estudos TransObjeto associado à PUC-SP e no grupo de pesquisa MatematiQueer associada à UFRJ. Coautore nas antologias poéticas Poesia Política: vote, Outros 500: Não queremos mais o quinhentismo, poETes: altas habilidades com poesia, Fotoescritos do Confinamento e recebeu menção honrosa pelo ensaio Desígnio de um corpo, na 4º edição do projeto Tem Livro Bolando na Mesa. Filipe possui aperfeiçoamento em Altas Habilidades ou Superdotação: Identificação e Atendimento Educacional Especializado pela UFPel e em Serviço de Atendimento Educacional Especializado pela UFSM (2022).
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