Supereficiente Mental: Ninguém nasce com consciência de sua própria superdotação, contextualize para nós a descoberta da sua.
Katia Pessanha: Não foi de repente, foi progressivo. Sou neta mais velha na família de minha mãe e me senti sempre muito incentivada e apoiada, mas não atribuía isso a qualquer característica excepcional.
O fato de ter sido sempre a melhor aluna e líder das classes durante o ensino fundamental e segundo grau e de obter as melhores colocações nos exames de admissão me levou a concluir que eu era muito inteligente, enfim foi algo pelo qual eu sempre fui reconhecida.
Ao participar de um processo seletivo na General Motors no final da década de 70 tive o feedback de que minha inteligência era 80% acima da média e novo teste no Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA) e o entusiasmo do avaliador reforçaram isso.
Um fato curioso foi que nessa época, um jovem engenheiro que trabalharia no mesmo projeto se aproximou de mim para comentar que havia visto os resultados do meu teste de QI e que havíamos tido o mesmo resultado.
O projeto acabou não acontecendo, mas esse engenheiro, recém-formado como primeiro de sua turma no ITA, se tornou meu marido e o pai da minha filha.
SM: Quais são suas áreas de alta habilidade?
Katia: Expressão artística, lógica, criatividade, liderança, relacionamento interpessoal, sensibilidade, automotivação.
SM: A sua filha Érika também é superdotada? Em caso positivo compartilhe conosco como foi a experiência de criar uma filha superdotada.
Katia: Ela é doutoranda em Educação, apontada como muito inteligente por seus professores, mas não identificada como superdotada. Seu pai (meu ex-marido) e eu queríamos criar uma pessoa feliz, não necessariamente superdotada. Tentamos educá-la com muito estímulo, mas sem demasiada pressão e sem expectativas advindas da condição de ambos.
SM: De quais modos você considera que as instituições sociais poderiam colaborar com e acomodar as necessidades e interesses neurodiversos pertinentes aos adultos e também aos superdotados na terceira idade?
Katia: Estímulos, estímulos, estímulos! Somos, ao menos eu sou, famintos de estímulos.
Ambientes que proporcionem estímulos a seus colaboradores, cidadãos, alunos com práticas de aprendizado, de troca de conhecimento, de oportunidades de expressão artística são o melhor que as instituições poderiam fazer para saciar essa fome além de propiciar encontros e interações profícuas entre pessoas com interesses semelhantes.
Ao mesmo tempo, apoio psicopedagógico de qualidade seria muito bem-vindo porque o real anseio humano é pela felicidade e não por resultados excepcionais.
A sensação de solidão, de ser diferente, de não pertencer é algo que eu vejo ser comum entre superdotados.
Espaços públicos e políticas públicas que privilegiem esse desenvolvimento e essa interação serão benéficos não apenas para as pessoas mas para o país.
SM: Do que se trata seu livro Marrana?
Katia: “Marrana! Amor e intolerância em tempos de Inquisição” é um romance, um livro de suspense embalado em ação e mistério ao falar de uma mãe judia que na Amsterdã de 1633 se depara com o desaparecimento de seu filho e que resolve buscá-lo em terras onde a Inquisição perseguia como hereges cristãos-novos que persistissem em suas práticas judaicas .
Como estima-se que de cada três portugueses vindos para o Brasil Colônia um fosse judeu convertido, Marrana trata de um importante componente da identidade nacional perdido pela força da coerção.
SM: Como a escrita de Marrana influenciou a sua própria identidade enquanto pessoa?
Katia: Eu sempre quis me realizar como escritora e escrevi poemas e crônicas ao longo da vida, mas escrever Marrana, ser capaz de pesquisar e escrever um romance me definiu como escritora e me deu um senso de realização profundo e longamente desejado.
SM: Fazes uso de algum aconselhamento psicopedagógico? Em caso positivo fale como isso funciona para você.
Katia: Fiz décadas de terapia com diferentes profissionais e devo a eles e à poesia minha saúde mental. Ser ouvida, ter um espaço seguro para me expor e a orientação de um profissional qualificado deveria fazer parte dos cuidados básicos de qualquer pessoa, superdotada ou não.
SM: Algum lema motivacional?
Katia: Não brigue com a vida porque ela pode ir embora.
Cunhei essa frase ao me recuperar da retirada de um carcinoma in situ no seio. Vinha de uma fase muito difícil e o tumor serviu para que eu acordasse e saísse do estado de depressão que me levava a enxergar todos os problemas como difíceis e quase insolúveis.
SM: Algum recado pra galera?
Katia: O equilíbrio entre ser alguém consciente de sua superdotação e ser uma pessoa arrogante é muito tênue.
Eu sempre me senti muito à vontade em ambientes estimulantes ou em culturas como a norte-americana ou judaica em que uma pessoa que se orgulhe de seus resultados não é vista com maus olhos como no Brasil.
Como não cair na arrogância?
Lembro-me de chegar entusiasmada em casa logo nos primeiros anos de vida escolar, anunciando um bom resultado aos quatro ventos. Meu pai, embora estimulasse o desenvolvimento pleno do meu potencial, me lembrou que eu deveria buscar exercer a modéstia, que cada pessoa tem um talento diferente e que eu jamais deveria humilhar as pessoas.
Desenvolver plenamente meu potencial sem me deixar dominar pelo orgulho, a competição e os impulsos egocêntricos tem sido o desafio de uma vida.
Ao longo de minha vida tive outros mestres, convivi com muitos superdotados e aqueles que eu mais admiro e que observo serem mais felizes são aqueles que exercitam essa superdotação como um serviço, sabendo como disse Saramago que “em terra de cegos só aumenta a responsabilidade dos que tem olhos”.